Num desses dias em que a inspiração nos dá um sacolejo no juízo, resolvi sacudir as lembranças, espanar o pó do tempo e, entre uma linha e outra, compus essa crônica para eternizar um episódio que, ao meu ver, é da mais pura essência faceciosa.
Era tarde de um domingo, 23 de maio de 2010, e a
cidade de Gumercindo Bessa estava num rebuliço só. Pelos quatro cantos se ouvia
o fuxico da campanha eleitoral que se aproximava. Os festejos juninos já batiam
à porta, e em cada beco, rua e esquina, respirava-se uma mistura de política
com aquele gostinho de "Salva Junina", tradição das boas que fecha
com chave de ouro o mês de maio.
Naquele
dia, o telefone tocou. Do outro lado, a voz já conhecida do meu amigo — o
sempre atencioso médico e forrozeiro de carteirinha — doutor Gilson Andrade.
Perguntou:
— E aí, o que tá fazendo?
Respondi com sinceridade:
— Tô dando bando no cachorro!
Riu e, sem pestanejar, me chamou para acompanhá-lo
numa visita à casa da amiga Maria do Flau, ali mesmo na antiga Rua da Usina, a
dois estalos de língua da feira.
Agora veja: eu tinha comprado uma camisa nova,
daquelas de gola polo que a gente guarda para estrear numa ocasião especial.
Pedi a Úrsula, minha esposa, para preparar a dita cuja. Ela passou com todo
capricho, botou amaciante, perfumou e pendurou com zelo. Pronto, estava feita a
pompa. Vesti a indumentária com a pompa de quem vai a batizado e lá fui eu.
Descendo a Rua da Usina, dei de cara com um bando
de guris numa algazarra danada, subindo e descendo a rua com uns canos
improvisados, atirando pitus como se fossem munição de guerra. Uma espécie de
“exército mirim de buscapés”, tradição viva desde o tempo do ronca. Do lado
oposto da rua, um trio de forró rasgava o fole com uma sanfona que chamava
atenção até de quem já tinha dançado a vida toda.
Foi aí
que o cantor do trio deu aquele grito:
— Doutor Gilson! Dá uma canja aqui, homem!
Gilson,
que é fã de primeira hora de Luiz Gonzaga — o eterno Rei do Baião — não pensou
duas vezes. Pegou o microfone e soltou:
— Dê um Lá Menor!
E começou com “Asa Branca”, depois emendou um
pot-pourri gonzagueano que fez até os passarinhos da redondeza silenciarem para
ouvir melhor. O povo foi chegando, juntando gente, e a tarde foi se derretendo
rumo ao Loteamento Balduíno, com o céu tingido de rosa e forró.
Depois da cantoria e das palmas, seguimos rumo à
casa da anfitriã. Dona Maria do Flau, mulher elegante e de cabelos como nuvem
de algodão, nos recebeu com aquele sorrisão e nos levou direto para a copa. Lá,
uma mesa de dar inveja a qualquer restaurante cinco estrelas: bobó, caruru,
acarajé, arraia e, claro, uma bandeja de pitus reluzentes que brilhavam mais
que bijuteria em feira de sábado.
Gilson, sempre bom de garfo e fiel ao sabor da
terra, se atracou logo com um acarajé caprichado: vatapá, caruru, camarão,
salada e mais um tantinho de pimenta. Eu fui no arroz com caruru — que me fez
suar em bicas só de olhar.
Chegada a hora do desafio maior, Gilson me ofereceu
o maior pitu da bandeja. Era um camaradinha robusto, suculento, quase me
dizendo: "vem que eu sou teu". Mesmo desconfiado, aceitei. Fui
desmontar o bicho com técnica e respeito, mas eis que... PÁ!
Um jato traiçoeiro de caldo saiu disparado, acertando em cheio a minha camisa
nova. Um verdadeiro atentado crustáceo à elegância!
Dona
Maria arregalou os olhos:
— E essa mancha aí na camisa, meu filho?
Eu,
resignado, só pude responder:
— Foi o esguicho do caldo do pitu...
Ela, com a sabedoria de quem já viu muito pitu por
esse mundo:
— Ah, meu filho... esse foi feito com dendê e leite de coco. Isso aí não sai
mais não. Pode dar adeus à camisa nova.
E assim, entre risos, vatapás e melodias de
Gonzaga, perdi minha camisa nova, mas ganhei uma das tardes mais memoráveis da
minha vida.
Gilson, além de ser médico que cuida com esmero da
saúde da mulher, é também amigo de fé, forrozeiro dos bons, desses que não
perde uma chance de visitar os amigos e ex-pacientes com o mesmo carinho. E com
ele, cada visita vira um capítulo à parte. E nesse capítulo, ao menos, o pitu
levou a melhor.
Em 12 de
outubro de 2015
Autor: Genílson Máximo