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sábado, 24 de maio de 2025

Popó, o Engraxate Monumental de Estância

Imagem ilustrativa - IA
 

Por Genílson Máximo — 24 de maio de 2025

 

Estância, essa joia do sul sergipano, parece ter saído das páginas de um romance de Jorge Amado — não por acaso, o escritor baiano se refugiou aqui nos anos 1930, fugindo da repressão do Estado Novo. Encantou-se. Disse que nosso povo era “o mais cordial do mundo” e, segundo os bastidores da literatura, teria se inspirado em figuras estancianas para criar personagens como Tieta e os jovens de Capitães da Areia. 

E não é difícil entender o fascínio. Estância tem vocação pra tudo: indústria têxtil, agricultura, pecuária, produção de cítricos, festa junina com 30 dias de fogueira acesa, carnaval com escolas de samba — o único do interior sergipano —, berço da imprensa estadual, pioneira na radiodifusão do interior e sede de uma diocese que abrange mais de 15 municípios. Mas, se há algo que Estância produz como ninguém, é personagem.

Foi num daqueles dias de janeiro em que até a sombra da catedral sua, que conheci Popó. Moreno, risonho, com 1,60 m de estatura e uns dois metros de presença, Popó era engraxate e encantador de almas. Seu trono de trabalho era uma cadeira robusta, com assento estofado e rodinhas de madeira, que ele empurrava com ares de embaixador até a Praça Barão do Rio Branco, bem ali ao lado do Abrigo Belvedere, defronte da catedral.

Popó não lustrava apenas sapatos — polia egos, esfregava tristezas e dava brilho à monotonia do dia. Com uma escova numa mão e uma piada pronta na outra, atendia operários, empresários, políticos aposentados e beatas em campanha contra o pecado.

Mas o que o tornava uma lenda viva não era apenas o bom humor ou a destreza com a graxa. Era, digamos... um atributo anatômico que a natureza lhe concedera com escandalosa generosidade. O comentário era geral: a calça de Popó parecia mais uma embalagem malfeita de mortadela — daquelas vendidas por quilo, mas descritas em metros. Ele usava calças folgadas, talvez por estilo, talvez por necessidade.

As beatas, ao vê-lo se aproximar, mudavam de calçada com a velocidade de quem avista o cão em forma humana:
— “Credo em cruz! O diabo que o parta em picadinhos!”, cochichavam, fazendo o sinal da cruz em modo turbo.

Popó ria. Ria com gosto, como quem já entendeu que nasceu para ser personagem de crônica e de roda de bar. E não eram só as beatas que se impressionavam com seus “dotes”. Um jovem cabeleireiro da Rua do Gravatá, falante e espirituoso, não escondia sua admiração:

— “Menino, sonhei com Popó! Acordei tremendo da franja ao tornozelo. Ele vinha, todo de branco, me oferecendo uma escova — e não era de sapato...”, dizia, abanando-se com a tampa de um pote de laquê, arrancando gargalhadas do salão.

Ele jurava que era coisa do subconsciente, mas não escondia o fascínio:
— “Tem gente que é marreta... Popó é marretão, minha filha!”

As piadas sobre Popó eram tantas que nem dava pra catalogar. Pela manhã inventavam uma, à tarde outra, e à noite, nas esquinas, ele já era tratado como lenda urbana. E era mesmo.

Como se não bastasse o carisma, Popó ainda frequentava, nos anos 80, os lendários cabarés da BR-101 — o de Gildo, o de Tomatinho, o Bambú de Cícero, o de Raimundo de Jacó e o da Ninha. Nos fins de semana, descia pro “inferninho” como quem vai trocar o óleo — e não era da graxa. Gastava boa parte do que ganhava alimentando prazeres carnais.

Mas ali, no território do desejo, ele também era exceção. As meretrizes, ao vê-lo se aproximar, topavam um uísque, uma dança, até um carinho. Mas, na hora do "pega pra capar", batiam em retirada

— “Popó, não dá! Isso aí é arma de guerra... Não é pra uso civil!”

E ele ria. Sempre ria. Porque Popó era assim: de dia, engraxava sapatos; de noite, fazia os cabarés temerem prejuízo. Um homem dividido entre a vocação e a provação.


Parabólica News

 

domingo, 11 de maio de 2025

Serenata, mijo e fuga: noturnas de um Brasil em sol maior


Se me permite destampar o baú de lembranças, trago aqui um episódio daqueles que fariam Noel Rosa rir com o canto desafinado da história. Era início dos anos 80, e eu era parte de uma trupe musical noturna, dessas que desafiam o sono, o bom senso e, às vezes, até a polícia.

Era 1983. Enquanto o país começava a apagar as luzes da Ditadura Militar, nós acendíamos as nossas — de lampião emocional, regadas a pandeiro e violão. Éramos quatro: eu, Arlinaldo, David e o inesquecível “Som” — filho do mestre Cocoré, referência quando o assunto era cordas e cutucões rítmos. O palco? As ruas caladas do Porto D’Areia e outras da cidade.

Às sextas, por volta das 23h30, o Jardim Velho nos recebia como a um quarteto clássico... de boteco. A voz era afinada na coragem e o repertório brotava do nosso surrado caderninho de letras, onde desfilavam canções de Benito di Paula, Fernando Mendes, José Augusto, Roberto Carlos, Sidney Magal e companhia sentimental. Às vezes, o jovem Unaldo — um quase-ídolo da MPB local — se juntava com suas composições próprias, um tanto ousadas, um tanto geniais, como todo bom compositor em início de carreira.

E nós não saíamos de mãos abanando: levávamos, debaixo do braço, uma garrafa de vinho de gengibre Vernon e, numa vasilha Tupperware, tainhas torradas, crocantes, preparadas pela mãe de Arlinaldo. Aquilo era nosso encanto — uma espécie de banquete boêmeo em plena noite.

A música nos levava a lugares insólitos. E às vezes nos jogava de volta. Uma madrugada, enquanto cantávamos na esquina da Rua da Rosa com a Rua Santa Luzia, fomos gentilmente agraciados com um pinico transbordando mijo — atirado da janela por uma senhora insone e sem apreço pela arte. Digamos que... a crítica foi líquida e direta.

Como se o banho de urina não bastasse, um camburão estacionou logo depois. O policial desceu num humor oposto ao nosso e anunciou, dedo em riste:
— "Vou ali no cemitério Cruz Vermelha. Se ao voltar vocês ainda estiverem aqui, vão todos presos. E lá a serenata continua... só que no xilindró."

Meia volta, lá vem o camburão de sirene ligada. Fomos tomados por um pânico operístico. “Som” mergulhou sob uma carroça de burro como quem busca o último esconderijo do apocalipse. David sumiu Rua da Baixa adentro. Eu escalei uma caçamba estacionada na Rua da Boa Viagem como se fosse o palco do Maracanãzinho. Arlinaldo, com o violão nas costas, evaporou rumo ao Campo do Cruzeiro. Sorte dele: a portinha lateral estava destrancada.

Em tempos de chumbo e medo, nossas noites eram feitas de afinação, fuga e sonhos desafinados. O sargento Nelson, comandante do TG-06-013, era um caso à parte. Entre uma ameaça e outra dos militares, nos convidava para cantar em sua casa. Tinha um ouvido mais generoso que técnico — o tipo de fã que não repara nos erros porque está ocupado demais vibrando com a emoção.

A comunidade nos acompanhava como podia. Alguns miravam pelas janelas e deixavam os rostos curiosos surgirem na penumbra. Outros apenas resmungavam e puxavam a coberta — nossos acordes eram como mosquitos sentimentais, zumbindo amor e nostalgia pela madrugada. Havia ainda os que nos ofereciam tira-gostos, bebidas e, claro, pediam uma música especial, daquelas que lhes agradavam os ouvidos e acalentavam o coração.

Os conjuntos musicais “Unidos em Ritmo” e “Os Cometas” (rivais) eram os nossos ícones inspiradores, bem como visitas que fazíamos ao afinador-oficial de violão, Zé Pequeno (cortava cabelo e desafinava os desafinados, na Rua Moisés Costa Carvalho, na feira, próximo do G. Barbosa). Grande mestre das cordas!

Foram anos de serenatas e sobrevivas, de paixão melódica em tempos políticos dissonantes. Não tínhamos Spotify, mas tínhamos coragem. Não vendíamos discos, mas distribuíamos lembranças. E, olha, mesmo depois daquele banho dourado e do susto com o camburão, ninguém ali pensou em parar de cantar.

Afinal, como diria nosso caderninho de letras, em letra tremida por Vernon e suor:
“Enquanto houver rua e luar, haverá música — ainda que, às vezes, com gosto de mijo e cheiro de liberdade.”

 

Genílson Máximo
24 de julho de 2017

segunda-feira, 21 de outubro de 2024

De Paconga a Toloco: personagens que fizeram história com humor


Ah, Estância! Nas décadas de 70, 80 e 90, essa nossa querida cidade era palco de personagens peculiares, indivíduos que, embora aparentassem ter alguma deficiência intelectual, conquistavam um lugar cativo no coração de todos. Eles faziam parte do cotidiano das ruas, sempre deixando suas marcas por onde passavam. Hoje, graças a avanços nas políticas públicas, é raro vermos figuras assim perambulando pelas vias, mas a memória desses tempos é tão viva quanto as piadas que nos faziam rir. Se hoje há respeito e inclusão, naquela época o humor ácido e irreverente era o jeito de lidar com essas figuras icônicas.

Lembro-me de 'Carcará', uma senhora de seus quarenta anos, conhecida tanto por seus cabelos desgrenhados quanto pelo vocabulário afiado. Ela se sentava na calçada do SESP, olhando o infinito com a testa franzida, como quem estivesse prestes a resolver os mistérios do universo. Só que o universo parecia não colaborar muito, porque, a cada passada de alguém, ela soltava: “Tá olhando o quê, cara da peste?” Um dia, um garoto atrevido gritou: “Carcará, cadê o ovo?” E a resposta veio rápida e feroz: “Tá debaixo da saia da tua mãe, seu arrombado! Filho de corno!” Não teve quem segurasse o riso. Dizia-se que esse humor ácido era resultado de um parto difícil, um tal de resguardo interrompido – mas, sinceramente, acho que era só a vida mostrando seu lado mais sarcástico.

Já 'Paconga' era uma mulher que desfilava pela Rua do Caminho do Rio com um vestido de noiva que, de tão sujo e amassado, parecia ter passado por umas bodas com o capeta. Sempre com um pedaço de pente metido nos cabelos desgrenhados, ela era alvo de provocações inevitáveis. “Paconga, cadê a monga?” – gritavam os moleques. E ela, sem perder a compostura, respondia com classe: “A monga é a puta que te pariu, filho de uma égua!” E lá ia ela, de porrete em punho, correndo atrás dos meninos, que se dispersavam como formiga em fuga. Contavam que Paconga havia sido abandonada no altar, o que talvez explicasse sua fúria conjugal reprimida.

Ah, e quem não se lembra de 'Toloco de Elefante'? A lenda viva da Rua da Rosa, do ABC, da Usina! Além de sua deficiência mental, enfrentava problemas de visão, mas era outro atributo seu que sempre chamava a atenção. Numa bela manhã, as 11h30, lá estava ele, sentado na porta da Escola do Comércio, totalmente alheio à geografia do próprio corpo... e com uma “estrutura” impressionante à mostra. As moças escandalizadas desviavam o olhar, enquanto os rapazes não conseguiam segurar a risada. Algumas senhoras ainda exclamavam: “Doido safado!” Mas, sinceramente, era difícil saber se a indignação vinha da loucura ou da inveja.

Também não podemos esquecer do 'Roda Roda'. Alto, moreno, e dono de uma voz rouca, sua maior diversão era girar em círculos cantando: “Roda, roda, roda, roda”. Parecia uma versão humana de um ventilador desregulado. Mas ele não era agressivo, pelo contrário, era até bom de prosa. Andava sempre com folhas de Espada de São Jorge e um patuá que, segundo ele, fora presente da Mãe Menininha da Bahia. “É pra espantar os inimigos”, dizia ele, enquanto girava mais um 360 graus com perfeição.

Por fim, tinha o Olímpio, o “agente de trânsito” mais famoso da BR-101. Vestido de uniforme completo, com direito a boina e apito, ele interrompia o tráfego com a autoridade de quem acha que controla a vida. O problema é que ele não controlava nem a própria sanidade, e a Polícia Rodoviária Federal era chamada com frequência para desfazer o congestionamento.

E, claro, não poderia faltar o casal lendário: Xebau e Xeboa. Sempre avistados entre a prefeitura e a Praça Orlando Gomes, eram conhecidos por suas “boas” histórias e, claro, pela caninha sempre à mão. Apesar de não apresentarem deficiência intelectual aparente, a falta de um lar fixo e de juízo certo os fazia figuras inconfundíveis, especialmente quando resolviam fazer do Abrigo, em frente à catedral, seu refúgio momentâneo.

Essas figuras inesquecíveis nos lembram que, apesar de todas as limitações, sejam elas intelectuais ou sociais, todos têm algo a contribuir para o folclore de uma cidade. E, claro, o riso sempre foi a melhor maneira de acolher o que não se entende. A loucura, afinal, não é nada mais que um ponto de vista diferente – e, naquelas décadas, os pontos de vista abundavam nas esquinas de Estância.

 

 Genílson Máximo

Em 28 de julho de 2023

 

 

 


O cão comedor de pintos de João Fala Fina

A notícia que circulou freneticamente nas redes sociais na última semana trouxe-me à mente um amigo de velha data, João Fala Fina. Homem conhecido pela sua capacidade de inventar histórias, jurava de pés juntos que seu cão subia paredes atrás de lagartixas e que seu gato, imagine só, gostava de tomar banho na gamela. Mas a última patranha foi a mais curiosa: agora, o seu cachorro virou comedor de pinto.

João Fala Fina tem uma galinha preta, dessas de pescoço pelado, que orgulhosamente desfilava pelo terreiro com uma ninhada de 15 pintos. Um verdadeiro desfile maternal! Enquanto isso, o seu cachorro, o famigerado 'Corró', passava os dias com o cão do vizinho, Sr. Mauro, um cão caçador nato, especialista em pegar perdizes. “De tanto andar junto com o cachorro do Mauro, o Corró desenvolveu uma nova habilidade: começou a exterminar os pintos aqui de casa. Agora, basta ouvir um piado que já vai direto!", lamentava João.

Eu estava conversando com João Fala Fina quando, de repente, vimos o Corró correndo atrás de um dos pintos da galinha. Ah, meu amigo, foi a gota d’água! O instinto materno da galinha despertou com tudo. Ela inchou as penas, piou como nunca e foi pra cima do Corró, distribuindo bicadas e sapatadas sem dó. O pobre cachorro, acuado, fugiu com o rabo entre as pernas. Galinha braba, valente que só ela!

Mas, claro, Corró não se deu por vencido. Assim que a galinha se distraiu, ele voltou e se deitou bem debaixo do tamborete. João, distraído com o celular, achou engraçado e resolveu testar uma teoria. Mexeu no aparelho, abriu um vídeo com o som de um pinto piando. Foi o suficiente! Num piscar de olhos, o esperto Corró abocanhou o celular e saiu disparado sítio afora, deixando João desesperado atrás dele.

Meia hora depois, Zé Licuri, vizinho do arraial, apareceu com o celular nas mãos. "Encontrei na estrada", disse ele, como se fosse um tesouro perdido. João, aliviado, pegou de volta o aparelho novinho, um desses de tela grande que ele havia acabado de comprar.

E como João Fala Fina não perde a oportunidade de uma boa invenção, logo após ver a notícia de uma mulher de Estância que capou o marido traidor, veio com sua solução mirabolante: “Ora, pra que violência, minha gente? Deixa comigo que meu cachorro resolve. Nada de lesão corporal! O Corró, comedor de pintos, é a solução perfeita para as mulheres traídas.” O que era uma piada, na boca de João Fala Fina, virou praticamente um serviço público.




Por: Genílson Máximo




domingo, 15 de setembro de 2024

A Mula sem Cabeça também assustou gente em Estância



A região Nordeste do Brasil, a terceira maior em extensão, atrás apenas das regiões Norte e Centro-Oeste, é composta por nove estados e oferece uma contribuição expressiva à cultura nacional. Sua diversidade cultural, folclórica e religiosa reflete a riqueza de seu povo, cuja formação resulta de uma profunda miscigenação.

O imaginário nordestino é único, forjado a partir da síntese cultural entre indígenas, africanos e europeus, sobretudo portugueses. Essa fusão moldou a identidade cultural do Nordeste, que se manifesta até hoje em suas expressões artísticas, como música, dança, culinária, religião e, particularmente, em seu folclore vibrante.

Chegando ao tema central deste texto, o folclore, é curioso notar como, embora algumas lendas não estejam tão presentes nas conversas cotidianas como em décadas passadas, ainda ocupam um lugar especial na memória coletiva, especialmente entre os mais velhos. A lenda da Mula sem Cabeça ou Mula-de-Padre é um dos mitos mais difundidos do folclore brasileiro, com suas raízes fincadas no período colonial. Essa narrativa está entrelaçada com elementos da tradição oral e do catolicismo, transmitidos por indígenas, africanos e portugueses.

A história relata que a Mula sem Cabeça é, na verdade, uma mulher amaldiçoada por se envolver romanticamente com um padre, uma transgressão moral gravíssima, dado o rigor do celibato clerical na época. Como punição, essa mulher se transforma em uma mula que vaga durante a noite, exalando fogo pelas ventas ou pescoço, já que não possui uma cabeça visível.

 Aqui em Estância

Em Estância, assim como a famosa lenda do Papa-figo, a Mula sem Cabeça também se fez presente no imaginário popular. Acredita-se que sua aparição assombrava os moradores da antiga *Travessa do Mirante*, especialmente naquela área entre o 4 Rodas e a atual Secretaria de Urbanismo, onde funcionava a distribuidora Suleste, de propriedade de Martinho Barreto e Hermolao.

Nessa região, onde havia terrenos pertencentes ao Sr. Chico de Jacinto e à Diocese, a lenda ganhava vida. O trecho, ainda sem pavimentação asfáltica na época, era palco para os encontros noturnos dos moradores, que se reuniam após o jantar para conversar até a madrugada. Nomes como Dona Paquinha, Iramy, Zé Tatu, João de Dioclécio e Seu Duda estavam sempre presentes. Sob a sombra de dois frondosos pés de jenipapo, onde hoje se ergue o prédio da Secretaria de Urbanismo, os vizinhos se acomodavam em banquinhos improvisados.

Conta-se que, em algumas noites, a aparição da mula sem cabeça aterrorizava a todos. O animal selvagem era visto correndo pelo caminho, relinchando, bufando e dando pinotes. Suas patas, que pareciam de ferro, ecoavam com força pelo chão. O Sr. João Papá, homem parrudo e de muita coragem, chegou a prometer que amarraria a mula; no entanto, ao avistá-la de perto e confirmar que realmente não possuía cabeça, desistiu da façanha e, num ímpeto de medo, se jogou no mato do terreno de Chico de Jacinto.

Naquela noite, os vizinhos da Travessa do Mirante, normalmente corajosos, preferiram não investigar mais a fundo se a mula tinha ou não cabeça, deixando o mistério sem solução.

Segundo a tradição, após uma noite de sustos, a mula-de-padre voltaria a sua forma humana ao amanhecer, retomando sua identidade como mulher. Essa lenda, além de provocar medo, também carregava um forte aviso moral: ela representava a punição divina para aqueles que transgrediam o sacro, envolvendo-se em relações ilícitas com figuras religiosas.

Assim, a Mula sem Cabeça, mais do que uma figura assombrosa, é um símbolo da rica tradição oral nordestina, que transcende o medo para se tornar um marco de identidade cultural.
 


Por: Genílson Máximo
Em 15 de setembro de 2024.
 
 

quarta-feira, 11 de setembro de 2024

A bodega de Seu Ciço: memórias de uma infância em Estância

Ele não media esforços para atender bem o cliente 

Que belas lembranças da década de 70! É verdade que o tempo passa rápido, mas certas memórias conseguem nos transportar de volta a uma época mais simples e cheia de encantos. Relembrar a infância e os elementos que compunham o cotidiano daqueles tempos nos envolve numa doce nostalgia.

Nas manhãs de domingo, os meninos dos bairros Botequim, Porto D'Areia, Santa Cruz, da Rua da Usina, da Rua da Bahia e da Rua da Rosa se reuniam no Jardim Velho — atualmente conhecido como Praça Orlando Gomes — para colher oitis maduros. Depois, desciam pela Rua do Cravo e faziam uma parada obrigatória na Bodega do Seu Ciço, na Rua da Baixa. Ali, Seu Ciço os recebia calorosamente, oferecendo balas, pirulitos e chupa-chupas. Embora não tivesse filhos, ele nutria um carinho especial pela molecoreba que frequentava sua bodega.

Naquela época, era comum as crianças irem tomar banho na maré, em um lugar chamado “Os Portinhos”, na parte baixa da Rua do Aquidabã. Ali, um banco de areia branca, cercado por ingazeiras, tinha cordas amarradas nos galhos, que serviam de apoio para mergulhos nas águas do rio Piauí.

Possuir um aparelho de televisão era um luxo reservado a poucos à época. Seu Ciço, no entanto, tinha uma TV de 24 polegadas, em preto e branco, da marca Philco, que ficava orgulhosamente posicionada sobre uma geladeira Kelvinator azul-claro, de cantos arredondados do lado interno do balcão. As novelas ‘Irmãos Coragem’, ‘Saramandaia’ (Globo) e ‘Jerônimo, o Herói do Sertão’ (Tupi), eram as preferidas do público local.

Para captar as imagens, era necessário o uso de uma antena de quase 20 metros de altura — as populares “espinhas de peixe” —, que trazia imagens difusas da Bahia. A televisão de Seu Ciço era uma novidade na freguesia que despertava entusiasmo na vizinhança, atraindo moradores dos bairros Botequim, Cachoeira, Porto e Candeal para assistir aos programas como ‘Os Trapalhões’, ‘Fantástico’, ‘A Praça da Alegria’ e o ‘Programa Silvio Santos’.

Outro ícone daqueles tempos era a vitrola  em móvel no interior da bodega. Com luzes coloridas no compartimento do toca-discos, ela criava um ambiente encantador. Os meninos, fascinados, passavam horas observando enquanto Seu Ciço colocava soldadinhos de plástico sobre o disco, que giravam em um movimento hipnotizante. O ambiente era animado pelas músicas de artistas como Ludugero, Marinês, Luiz Gonzaga, Jackson do Pandeiro, Genival Lacerda e o Trio Nordestino.

A bodega de Seu Ciço era um verdadeiro armazém de variedades, oferecendo de tudo um pouco: materiais de costura, produtos de limpeza, alimentos, além de itens de uso diário como carvão, cordas, utensílios domésticos; comercializava cigarros: Clássico, Astória, Hollywood, Continental, bem como fumo em corda, cachaça pura (cruaca), querosene Jacaré, bolachinhas de goma, bolachão Chapéu de Couro.

 Sobre o balcão, ele mantinha uma frasqueira giratória com tampa de alumínio, recheada de balas Apache, chiclete Ping-pong, doces de leite, mariolas e outras guloseimas. Ele atendia a todos com cordialidade, vendendo desde meia caixa de fósforos a pequenas porções de óleo de comida, açúcar ou café. Seu lema era garantir que ninguém saísse sem o que precisava.

Dona Bené, sua auxiliar no balcão, era uma senhora de cor preta, cabelo crespo e corpo volumoso, dentes brancos, sorriso largo. Muito elegante! Se adornava com vestidos longos até os tornozelos. Em uma ocasião memorável, um homem com problemas mentais entrou na bodega e pediu: “Ciço, embrulhe cinco cruzeiros de cabelo xuim.” Rindo, Seu Ciço retrucou: “Deixe de bestagem!” Mas foi Dona Bené quem, munida de uma vassoura, o expulsou, dizendo: “Aqui está o xuim, seu atrevido!” O homem saiu correndo.

Torcedor fervoroso do Corinthians, Seu Ciço ficava especialmente animado nos dias de jogo. Preparava a sala de sua bodega para receber os convidados e assistir às partidas em sua televisão. Ele sempre inovava para agradar e fidelizar a clientela. Reservava uma garrafa de aguardente Baiúca e um prato com requeijão em fatias, estava feita a recepção! Sinho, um dos clientes mais fidelizado, chegava à bodega pela manhã e só saia já entardecendo após engolir todas – milona, pindaíba, capim-santo, cidreira, pau-ferro, etc.

Seu Ciço tinha um estilo singular: usava as calças bem ajustadas acima do estômago e ostentava um corte de cabelo peculiar, com laterais raspadas e um topete frontal, lembrando o visual de Ronaldo na Copa do Mundo. Ele era figura certa nos funerais de conhecidos e amigos, sempre bem-vestido com seu chapéu de baeta preto e carregando um guarda-chuva no antebraço.

Natural de Riachão do Dantas, no agreste sergipano, Seu Ciço trabalhou por 17 anos na fábrica de tecidos Santa Cruz.  Ele foi um cidadão de ações de vanguarda no comércio, um cidadão reconhecido por sua integridade e bondade.

Seu Ciço descansa no Cemitério da Piedade, na cidade de Estância. Faleceu em 10 de dezembro de 1995.

 

Genílson Máximo

18 de setembro de 2011.


 

 


 

segunda-feira, 26 de agosto de 2024

O gorgolejo do peru do prefeito alegrou a tarde

Numa pacata cidadezinha do interior, o prefeito era um homem de múltiplas paixões: a medicina e a arte de receber bem. Admirado e respeitado por todos no município, ele não só cuidava da saúde da população, mas também era conhecido por sua hospitalidade calorosa. Em feriados e fins de semana, sua casa tornava-se um ponto de encontro para o secretariado municipal e amigos, onde política se entrelaçava com amizades, regadas a conversas envolventes e uma gastronomia impecável.

Essas reuniões eram eventos aguardados ansiosamente. O som inconfundível das latinhas de cerveja sendo abertas, com o típico “pssst” que acompanha a liberação do gás, trazia consigo a promessa de refrescância, enquanto o aroma inebriante do feijão-tropeiro dominava o ambiente. Petiscos variados cobriam a mesa, despertando apetites e suscitando um clima de celebração que se espalhava na área gourmet no quintal.

O prefeito era um anfitrião nato, que recebia cada convidado com uma alegria genuína. Sua casa, sempre aberta, era um refúgio onde as tensões do cotidiano eram dissipadas em meio a boa comida, música e uma hospitalidade que aquecia a alma.

Ao lado, um cajueiro carregado de frutos vermelhinhos saciava a gula dos afeiçoados por um aperitivo. A fruta, servida como tira-gosto, era motivo de disputa!

Em uma dessas ocasiões, a mesa estava repleta de iguarias: carne de porco assada, frango frito, cozido, e, claro, o famoso feijão-tropeiro, já conhecido e apreciado por todos. Mas, naquele dia, algo inusitado estava prestes a transformar a reunião em uma história que seria lembrada por muito tempo, marcada por uma cena que beirava o cômico.

À porta da casa do prefeito, surgiu um vereador trazendo um presente bastante peculiar: um peru. Não era um peru comum — parecia saído de um desenho animado, com penas eriçadas e uma postura que denotava tudo, menos tranquilidade. “Trouxe para o senhor levar para o sítio, é de raça, reprodutor”, disse o vereador.

O animal, aparentemente desconcertado com o ambiente festivo, e possivelmente irritado pelo som do grupo de samba e pagode que tocava ao lado, começou a se agitar. Com as asas abertas e uma postura imponente, o peru parecia pronto para a batalha. As conversas cessaram momentaneamente, e todos os olhares se voltaram para o novo “convidado”. Foi então que algo inesperado aconteceu: como se tivesse sido provocado, o peru fixou seu olhar no secretário de Esportes e, sem qualquer aviso, disparou em sua direção.

O secretário, João Moqueca, homem atlético e habituado a desafios físicos, não esperava ser perseguido por um peru naquela tarde. Tentou se desviar, mas o peru parecia determinado a alcançá-lo. Com as penas arrepiadas e emitindo um gorgolejo que mais parecia um grito de guerra, o peru correu atrás de Moqueca, para a diversão geral dos presentes, que riam até as lágrimas.

Mas o espetáculo não terminou aí. O peru, ainda tomado pela agitação, fixou-se em dois gansos que passeavam calmamente pelo quintal, observando a piscina de águas cristalinas. Josafá, motorista do prefeito, já havia impedido os gansos de se banharem na piscina várias vezes, mas, naquele momento de distração, o peru viu sua oportunidade. Num movimento rápido, correu atrás dos gansos, que, assustados, não tiveram outra escolha senão mergulhar na piscina em busca de refúgio. Os gansos, aproveitando o inesperado ataque, nadaram rapidamente, enquanto o peru, frustrado, permanecia na borda da piscina, sem conseguir alcançar seus alvos.

Ao lado de todo prefeito, há sempre um dedicado “Dirceu Borboleta”, apressadamente, cuidou de prender o peru no galinheiro. Entretanto, o secretário de Obras, Jacinto Pinto, com o apetite dos aborígenes, sugeriu que o peru fosse integrado à ceia. Uma das convidadas, dona Cacilda, admiradora das tradições africanas, salientou que aquele peru parecia ser "batizado".

Dorotéia, que não fazia parte das irmãs Cajazeiras, levantou-se da cadeira toda espevitada, ajeitou a saia e os óculos, e ofereceu-se gentilmente para cuidar do peru. Ela sugeriu levá-lo para o seu sítio, demonstrando sua disposição em ajudar.

E assim, o peru terminou seu dia confinado, ainda exibindo seu característico “glu-glu”. Aquele almoço, que começou como tantos outros, transformou-se numa crônica repleta de vida, onde o cotidiano encontrou o inesperado, e o peru tornou-se a estrela de um dia que seria lembrado por todos.

 

 

Por: Genílson Máximo

Em 22 de agosto de 2024.

 

 

sexta-feira, 16 de agosto de 2024

Onze anos de saudades: a vida exemplar do ex-prefeito Pedro Siqueira

 

Agosto deste ano marca os 11 anos de saudade de Pedro Barreto Siqueira, empresário, ex-prefeito, ex-deputado e proprietário da Casa Vitória, uma icônica loja que prosperou por décadas na Rua Capitão Salomão, em Estância. Pedro Siqueira era um homem de alma generosa, sempre disposto a ajudar o próximo e a contribuir com a cultura local.

Com sua conversa sempre afável e encantadora, ele cultivava o hábito de dialogar com amigos e conhecidos que cruzavam o passeio de sua loja. Muitas tardes, Pedro era visto relaxando em uma cadeira, desfrutando da sombra e da brisa que ali passava. Sempre trazia uma frase de sabedoria na ponta da língua, como a que costumava citar de Friedrich Nietzsche: “Aquilo que se faz por amor está sempre além do bem e do mal.”

Lembro-me de uma vez, ao passar pela Casa Vitória, de ter me encontrado com ele. Aproveitamos o momento para trocar ideias sobre diversos temas. Ele, com sua tranquilidade característica, falou sobre sua gestão como prefeito de Estância (1959-1962), a luta para implantar a Escola Municipal ‘Júlio Leite’ e sua preocupação com o primeiro emprego para os jovens. Pedro Siqueira era, sem dúvida, um homem de cosmovisão.

Durante nossa prosa, aproveitei para solicitar um patrocínio para um programa de calouros que seria realizado no auditório do Gonçalo Prado. Sem hesitar, Pedro me ofereceu um rádio AM/FM portátil, o mais moderno da época, como prêmio.

Era março de 1990, e o programa de calouros estava marcado para o domingo, 15 de abril, duas semanas antes do show comemorativo ao 1º de maio, aniversário da fundação da Rádio Esperança. Para garantir prêmios aos três primeiros colocados, também obtive o apoio da Relojoaria Guararapes, que doou um relógio da marca Technos, e do empresário Ivan Leite, que contribuiu com uma bicicleta. Assim, os prêmios estavam garantidos. Além disso, contei com o apoio de Nivaldo Silva, então deputado, que também ofereceu um patrocínio.

Nivaldo Silva estava no último ano do seu mandato de deputado estadual (1987/1990), eleito pelo PFL, com a soma de 8.516 votos. Alinhadíssimo com o governador João Alves Filho.

Para animar o evento, contratei o conjunto “Os Cometas”, liderado pelo saudoso Gumercindo, e o som foi providenciado pelo “Moscou Som”. Para cobrir os custos, vendi dezenas de ingressos aos alunos das escolas locais. O programa foi um sucesso!

Durante o evento, enquanto eu atuava como locutor-apresentador, tive a honra de receber a visita de três patrocinadores ilustres: Dr. Jorge Leite, Seu Pedro Siqueira e Dr. Ivan Leite, que fez a entrega do prêmio ao vencedor do 1º lugar (uma bicicleta). Dias depois, reencontrei Pedro Siqueira, que me parabenizou pelo sucesso do evento e se ofereceu para patrocinar o próximo.

Pedro Siqueira foi, em seu tempo, um homem cuja vida e legado devem ser seguidos pelas gerações futuras. Seu nome está eternizado na sociedade estanciana, com uma justa homenagem no bairro Alagoas, onde se localiza o residencial “Pedro Siqueira”.

Ele faleceu em 11 de agosto de 2013, aos 87 anos, deixando uma lacuna na política local e um legado de honradez, compromisso e seriedade. Sua paixão por Estância e seu empenho em contribuir para o bem-estar da comunidade permanecem vivos na memória de todos.

 Fotos da época


15 de agosto de 2024

Por: Genílson Máximo

 

terça-feira, 21 de maio de 2024

Em vez de amigo da onça, Pirão foi amigo do gato


Era um dia de domingo, reunidos peladeiros de final de semana, ávidos por ‘bater um baba’, a bola já aparentava desgaste, mesmo assim, era latente o desejo pelo certame. Um dos amigos, apelidado de ‘Cotovelo’ - pernambucano aperfeiçoado em Estância, ganhava a vida como Mestre de Obras -, era o encarregado de pegar de casa em casa os peladeiros. Possuía um fusquinha ano 74, já enfadado pelo tempo de uso, de cor vermelha, pintura queimada. Há quem diga que com um arame e um alicate qualquer uma arruma o Fusca.

Parece ser verdade, pois, Cotovelo transportava um caixote no porta-malas onde continha quase outro fusca desmontado. Tinha de tudo!

Quanto ao ‘bater um baba’, a expressão me fazia curioso, não sabia ao certo a etimologia da expressão. À época, dei-me com um muro na cara e segui na escuridão. Com ajuda dos robôs do Google, hoje, saciei minha curiosidade.

O nosso caso se deu em 1982, ano em que a Seleção montada por Telê era das melhores, só tinha craques, equipe que encantou o mundo, embora o resultado de Brasil 2 x 3 Itália nos tirou o título de melhores do mundo; aquela equipe encantou e de volta foi recebida com aclamação popular.
Mesmo com o coração sofrido pela derrota, o gosto pelo futebol continuava latente. Cotovelo, logo cedo, fazia a manutenção no seu possante. Queria certificar-se de não dar defeito. O banco dianteiro do passageiro era escorado por um pedaço de cabo de vassoura, a tranca da porta, do lado do motorista, era improvisada com um ferro torcido no formato da letra U, embora, essas deficiências eram superadas por um motor de 1.600 cilindradas.

Cotovelo saía recolhendo os peladeiros de casa em casa: Coice de Mula, Canela, Morcego, Pirão, Cal, Coló, Jegue, e lá iam todos para o baba. Saíam cedinho, antes das sete, isto para encontrar um campo vazio, dentre esses: campo de Seu Dó, na Rua do Quilombo; campo da Praça do Amparo; campo do Cigano (Copacabaninha); às vezes nos Portinhos, na maré, onde existia imensa faixa de areia.  

Numa dessas idas para recolher os atletas, parou na casa de Cal, na Rua Zé da Bica, ao estacionar o carro, um gato se meteu debaixo do veículo. Ao sair, o fusca acabou pisando no rabo do felino. O carro estava lotado, apagou o fogo, o gato danou-se a miar, a fazer o maior alarde. Cotovelo desceu e agachou-se para ver o labafero, nesse momento, levou uma azunhada no rosto e no braço; furioso, tentou arrancar o gato puxando pela cabeça, não deu certo.  

Pirão, que ocupava o banco do passageiro da frente, desceu, empurrou o carro e salvou o gatinho da sofrência. Todos tiraram onda: “Você agora foi amigo do gato, em vez de amigo da onça”. Naquele momento Cotovelo estava na cozinha tentando passar mertiolate no local ferido. Todos iniciaram um bullying com Pirão, diziam que ele era o amigo do gato. 

 

Autor: Genílson Máximo

Em 01 de novembro de 2021

 

 


segunda-feira, 20 de maio de 2024

A figura imaginária do Papa-Figo continua viva

imagem ilustrativa: tinha essa imagem o carro do PaPa-Figo


O temido Papa-Figo assombrava a infância nas cidades do Nordeste durante as décadas de 60 e 70. As crianças da época sentiam um profundo temor apenas ao ouvir seu nome. A crença popular associava o Papa-Figo a uma figura sinistra que se alimentava do fígado de crianças, alimentando assim o medo que permeava a imaginação infantil.

Em um estudo realizado pela Universidade Estadual da Paraíba, especulou-se que, no imaginário coletivo, o Papa-Figo poderia ter sido uma figura afetada por doenças como hanseníase (popularmente conhecida como lepra) ou doença de Chagas, que causa inflamação no fígado. Essas possíveis enfermidades contribuíram para a construção desse personagem sombrio.

Os pais, preocupados com o bem-estar de seus filhos, orientavam que eles não aceitassem presentes de estranhos, pois acreditavam que indivíduos desconhecidos que ofereciam brinquedos e doces eram enviados pelo Papa-Figo. O simples avistamento de um carro preto e misterioso, com vidros escuros, muitas vezes interpretado como o veículo do Papa-Figo, gerava pânico, especialmente no bairro Porto D'Areia. Muitos pais chegaram ao extremo de trancar suas portas como medida de segurança.

No bairro Porto D'Areia, os pais costumavam enviar seus filhos para comprar pão na bodega de Joãozito, bananas na casa de Seu Dudu e doces na casa de dona Rosinha. Quando o carro preto e estranho aparecia, os pais recolhiam rapidamente seus filhos e não os deixavam mais na rua. O mesmo cuidado era estendido às crianças que costumavam brincar ou tomar banho na fonte do Beque, propriedade de dona Chica, na Rua da Tamanca.

Segundo os rumores da época, a figura do Papa-Figo era associada a um conhecido empresário da cidade, que desenvolveu uma doença que carecia de fígados de crianças para conter seu mal. Havia também boatos sobre a anormalidade de suas orelhas. Após retirar o fígado da criança, uma quantia em dinheiro era deixada para cobrir as despesas do funeral e auxiliar a família, tornando a lenda ainda mais perturbadora.

Naqueles tempos, os garotos viviam em constante alerta, sempre suspeitando de qualquer coisa que pudesse estar ligada à figura do misterioso Papa-Figo. Em uma tarde, eu e três amigos, todos com cerca de sete anos, estávamos voltando de um mergulho na maré, perto do prédio do trapiche. Enquanto caminhávamos pela ladeira da Arrupiada, um carro preto e misterioso desceu em nossa direção. Num instante, começamos a correr freneticamente, conseguindo, de alguma forma, passar por uma cerca de cinco fios de arame farpado. Finalmente, adentramos na propriedade do senhor Tonho do Lagarto, com nossos corações batendo forte e nossos olhos arregalados de medo.

 

Na minha infância, tive a oportunidade de conhecer um senhor conhecido como 'Galinha de Anzol'. Ele tinha o hábito de exagerar no consumo de bebidas alcoólicas e frequentemente era visto cambaleando enquanto se dirigia para sua casa na Rua da Tamanca. Às vezes, ele costumava verbalizar palavras desafiadoras, como “Venha, Papa-Figo, filho de uma égua, venha me pegar!” Enquanto verbalizava, retirava a faca que sempre carregava consigo e riscava o chão em círculo.

Luluca, um menino de dez anos, filho da senhora Zefinha de Boquita, era peralta e tinha uma voz fanha. Ele costumava se esconder atrás da porta, olhando pela greta, gritava: “Galinha de anzol!” O senhor, ao ouvir isso, perdia completamente a compostura. “Galinha de anzol é quem lhe pariu, seu papa-figo de bosta”.

 


Em 05 de setembro de 2023

Genílson Máximo

 

quinta-feira, 16 de maio de 2024

Vida na Vila: entre o futebol, as fofocas e o sabor do cotidiano

Foto ilustrativa


Os fatos que irei relatar nesta crônica ocorreram na década de 1970, um momento em que o país estava imerso nas emoções da Copa do Mundo. A Seleção Brasileira de 1970 foi, sem dúvida, uma das que reuniu maiores craques que o futebol brasileiro já viu em uma Copa do Mundo. Durante horas, os brasileiros se voltaram para os aparelhos de rádio e TVs, deixando temporariamente de lado a Ditadura Militar que assombrava o país. A habilidade e destreza de craques como Jairzinho, Rivelino, Gérson e Pelé, entre outros, levava os brasileiros à loucura.

Foi nessa atmosfera que nos mudamos para uma vila no Porto d'Areia, uma propriedade do Sr. Dioclécio, nas proximidades da Escola Gilberto Amado. A vila era composta por dez casinhas e um banheiro comunitário que desembocava em uma trilha em direção à maré.

Lembro-me vividamente de Dona Merentina de Pompilo, que, logo cedinho, batia de porta em porta com sua voz que lembrava o piado de uma mãe-da-lua e seu sorriso desdentado, perguntando a Dona Dalvina: “Tem uma capinha de fumo para eu mascar”. A senhora Dalvina guardava sempre um bom suprimento de fumo, pois tinha o hábito de fumar cachimbo. Enquanto isso, Dona Merentina de Pompilo continuava a percorrer as casas, com uma criança de dois anos agarrada à barra de sua saia amarrotada, costumava perguntar a pequena filha: “Ô, Gevaninha, você já cagou ou ainda vai cagar”. A menina logo respondia: “Já caguei, mamãe.”

Com um pedaço de pente entalado no cabelo, Dona Merentina enxugava o nariz escorrendo da pequena com a barra do seu vestido e seguia seu caminho, sem perder o gosto pelas fofocas, de porta em porta. No corredor da pequena vila, um galo guerreche aproveitava os pedacinhos do bolachão que Gevaninha comia, enquanto um gato preguiçoso descansava sobre uma janela voltada para o nascente, na casa de Dona Dadá. Nas noites de festa junina, quando o beco ficava sem luz, a meninada soltava fogos de artifício e gritava: “Fogo no beco que o beco tá escuro”, e o fogo comia no centro! Agitava os moradores.

Numa dessas brincadeiras, um pitu de cano enroscou-se na peruca de Bebel, um jovem homossexual, morador da vila. Tirou o sapato do pé e partiu para cima da gurizada. Aconteceu um fuá danado naquela noite, todos saíram de suas casas para ver o ocorrido. Bebel desceu dos saltos, ficou mais nervosa que gato em dia de faxina. Alguns o viam de lado, outros mantinham boa relação com ele. Bebel, nas horas de folga, cortava o cabelo dos meninos, bem como dava escova no cabelo de algumas senhoras que jamais teriam como ir a um salão de beleza. Ele fazia gratuitamente.

O marido de Dona Merentina de Pompilo, popularmente conhecido como Zé Catolé, era um habilidoso pedreiro. No entanto, era chegado a ‘marvada’. Ele costumava frequentar a bodega de Zé de Anísio aos domingos logo cedo. Por ter sete filhos para sustentar, ele raramente tinha dinheiro suficiente para saciar seu desejo pela cruaca.  Apoiado no balcão, segurava um copo vazio e pedia aos clientes que tomassem um aperitivo para que ele pudesse despejar as sobras em seu copo. E assim, ele o enchia.

Após horas nessa dinâmica, quando o sol já passava do meio-dia, Zé Catolé já estava chamando urubu de beija-flor. Com o pescoço arriado, cochilava sentado e, com sua astúcia de cantor, apoquentava os fregueses cantarolando a música “O Ébrio”, de Vicente Celestino, lembrava um disco arranhado.

Seus filhos, ainda jovens, vinham buscá-lo em uma galinhota. No caminho de volta para casa, ao passarem em frente à residência de Dona Marieta, ele cantava provocadoramente: “Ai, Marieta, ai, Marieta, nem que o diabo arranque o rabo, eu não deixo a minha preta”. Isso era para tirar do sério a viúva, Dona Marieta, que havia se insinuado para ele tempos atrás, mas fora rejeitada.
Dona Marieta era viúva há cinco anos e ainda não havia contraído novas núpcias. Mulher de 37 anos, branca, de pele rosada no rosto, cabelos castanhos, quadris largos e pernas bem torneadas, gentil. Mas, como o coração é uma terra desconhecida, a bela senhora estava cada vez mais interessada em Zé Catolé.

Na vila, havia um morador bem conhecido chamado  Zé de Luzia. Era um sujeito fanfarrão, se gabava bastante e costumava se vestir com roupas brancas e chapéu de baeta. Porém, sua habilidade em trabalhos manuais era praticamente nula. Ele se apresentava como rezador e afirmava incorporar uma entidade espiritual. No entanto, de vez em quando, acabava exagerando na bebida e, ao chegar em casa durante a noite, a confusão era certa. Brigava com a esposa e até chegava a bater nos filhos. Em uma ocasião, a polícia foi chamada e, ao chegar, dada ordem de prisão. Zé de Luzia se apresentou encabocado e um policial chamado Lavanca agiu de forma enérgica, fazendo com que a  entidade espiritual se afastasse, deixando Zé de Luzia nas mãos da polícia.

Habitavam  à vila mecânicos, motoristas, costureiras, pedreiros, empregadas domésticas, rezadeiras, pescadores, pai-de-santo. Como sempre, a vila estava repleta de histórias e personagens peculiares. A senhora que vendia cerveja secretamente na ausência do marido era conhecida como Dona Eulália. Sua casa tinha uma entrada discreta nos fundos, onde os interessados em uma cerveja gelada formavam uma fila. Ela sempre foi uma mulher misteriosa, com olhos penetrantes e um jeito enigmático de lidar com as pessoas.

Enquanto isso, a vizinhança comentava sobre o “inferninho” que acontecia na casa. As fofocas corriam soltas, e os vizinhos imaginavam o que poderia estar acontecendo lá dentro da sua casa. Foi então que a descoberta de uma janela no lado do poente, nos fundos da casa, trouxe uma nova curiosidade para a garotada.

A janela era como um portal para desvendar os segredos que circulavam entre os adultos. As crianças formavam fila, esperando sua vez de espiar pelas frestas da janela e descobrir o que realmente acontecia na misteriosa casa de Dona Eulália. Entre risos e sussurros, eles compartilhavam as informações que coletavam em suas espiadas. Prato feito para os comentários de Dona Merentina de Pompilo.

Enquanto isso, a vizinhança se reunia na casa da gentil vizinha, Dona Cleuza, que possuía um pequeno aparelho de TV. As crianças se aglomeravam na sala, ansiosas para assistir aos jogos de futebol da Copa do Mundo ou para acompanhar as novelas que encantavam a todos na época. “Irmãos Coragem”, “Cavalo de Aço”, “O Semideus”, “O Bem Amado” eram algumas das tramas que prendiam a atenção da vizinhança.

Ah, como esses tempos deixaram saudades! A simplicidade, a camaradagem e a felicidade que permeavam a vila eram incomparáveis. Todos aqueles personagens, amigos, pessoas boas e humildes, deixaram uma marca profunda na memória do autor desta crônica. E é com a intenção de eternizar essas memórias que essa narrativa foi construída, como um tributo a um passado inesquecível.
 


produzida em 02 de novembro de 2023.
Genílson Máximo.

 

 

terça-feira, 7 de maio de 2024

Zé de Antero, o homem que botou o lobisomem para correr

O caso a ser discorrido adveio num final de semana de dezembro de 2008 e traz uma narrativa rica em detalhes culturais e folclóricos, coisas que só existem no interior. A convite de um amigo de longa data, Zé de Antero, fomos à sua casa no povoado Alto do Cheiro, no município de Riachão do Dantas, para desfrutar de um dia na roça.

Ao chegarmos à cidade, inspirado por uma melodia de um conhecido forrozeiro da região, Zetinha, fiz questão de visitar a igreja de Nossa Senhora do Amparo, Padroeira da Cidade. Isso me trouxe à memória a história de um garotinho chamado Augusto Sérgio, que, em 1966, ao tocar o sino no momento da elevação da missa, sofreu um acidente ao cair da torre. Ele foi socorrido e levado para o hospital de Lagarto, falecendo durante a viagem. Na época, o acontecimento abalou a cidade e a região.

Riachão do Dantas, município do Centro-Sul Sergipano, ganhou notoriedade nacional devido a reportagens de TVs sobre o Bode Bito. Esse animal vivia solto pelas ruas e praças, gostava de festas populares, assistia a missas e acompanhava sepultamentos, como se prestasse a última homenagem aos riachãoenses que partiam para a eternidade. As pessoas o alimentavam até com leite no vasinho e o consideravam uma personalidade.

Uma determinação judicial levou o caprino a ser confinado e retirado das ruas. Segundo o proprietário, Joélio, Bito ficou profundamente mergulhado em depressão e sem apetite. No entanto, a juíza revogou a decisão, e Bito voltou a ser livre novamente. O ilustre animal é lembrado por meio de uma estátua na saída da cidade.

Deixando a cidade, seguimos por uma estrada vicinal, ladeada de sítios, propriedades, cercas, plantações, muita poeira até o povoado Alto do Cheiro, onde o amigo Zé de Antero e sua esposa, Maria de Anita de Zé da Onça, nos aguardavam.

Ambiente acolhedor e atmosfera atraente. Fomos calorosamente recebidos com uma abundância de comidas, bebidas e músicas, além de uma hospitalidade sem igual.

As senhoras Marielze, Anita, Maria do Carmo, Bezita, familiares do anfitrião, coordenavam a preparação das comidas sob o fogão a lenha; as tampas das panelas deixavam escapar o aroma delicioso que fazia as tripas no estômago baterem palmas.

A residência, localizada à beira da estrada, tinha ao fundo um vasto plantio de mandioca, macaxeira, abacaxi, maracujá, mamoeiro, canas. No alpendre, duas janelas arejavam a residência; uma longa mesa de madeira de jaqueira comportava aperitivos como Pitú, cachaça de alambique, limões e cajus para "tirar o gosto da bicada". Com olhares faceiros para as bebidas, estavam: Catolé, Mutuca e Badeco, rapazes aficionados por uma cachacinha com limão que só raposa.

Tonho de Antero, um exímio contador de estórias, é daqueles que falam pelos cotovelos, gabola, inveterado, com ares de valentão. Em suas narrativas, contava que fez onças miarem, lobisomem correr e até assustado almas do outro mundo. Na roça, a crença da aparição de lobisomem durante a quaresma é bastante difundida.

O dia foi curto para comportar tantas alegrias, travessuras, refeições e até karaokê. Zé de Antero cantou músicas de Evaldo Braga; Catolé, de Unha Pintada; Badeco, de Adelino Nascimento e, assim, por diante! As mulheres faziam o back-vocal e contribuíam para dar uma baixa no estoque de cerveja. Maria de Anita de Zé da Onça perdeu a conta dos goles de Campari que ingeriu. Verdadeira dona esponja! Ficou zambeta e colocada pelo marido na camarinha.

Passando da meia-noite, Zé de Antero, após "encher o barril" e alegando calor, preferiu dormir em uma rede no alpendre. A casa estava lotada: filhos, noras, genros, netos, irmãos, amigos, todos se ajeitaram para dormir em colchonetes e esteiras pelos compartimentos da casa. Zé de Antero dormiu sozinho do lado de fora.

No meio da madrugada ocorreu um labafero: os cães passaram a latir desesperadamente como se estivessem assustados. Algo circulava ao redor da casa, inspirando um sopro forte que provocava o desespero dos cães.

Zé de Antero acordou meio grogue ainda, assustado, pedindo para que abrissem a porta, porém, todos temerosos, recusaram-se. Aperreado, disparou a correr malhada adentro. Parecia ser um boi solto no ambiente, mas, segundo Zé de Antero, era um lobisomem que ele fez o bicho correr.

Já com a luz do dia, viram que Zé de Antero estava cagado. Ficou a dúvida se foi por conta da mistura de comidas do dia anterior ou se foi do susto que ele deu no lobisomem.

 

Genílson Máximo


 

 

quarta-feira, 13 de março de 2024

O legado de Dona Ninete: uma história de coragem e empoderamento feminino

Homenagem a uma guerreira esquecida na história

Março é um mês repleto de homenagens às mulheres, e com toda razão! Elas são as responsáveis por colorir o mundo, trazendo à vida tantas outras vidas. São verdadeiros anjos da guarda em carne e osso, guerreiras incansáveis. No entanto, muitas vezes são esquecidas pelo tapete vermelho e pelos holofotes sociais, relegadas à invisibilidade nas estradas da vida.

Na década de oitenta, em Estância, às margens da BR-101, existiam os famosos bordéis, conhecidos como "Casas Obscenas". Uma figura proeminente nesse cenário era Dona Ninete, uma mulher forte e destemida. Sempre elegantemente vestida, com cores vibrantes e adornada com joias, ela cativava com seu perfume e sua presença marcante. Com 1,70m de altura, cabelos cacheados e uma vaidade única, seus feromônios aguçavam os desejos masculinos.

No seu bordel, Dona Ninete acolhia mulheres pobres e donas de casa que fugiam de situações de violência doméstica. Era o porto seguro para tantas outras mulheres em momentos de necessidade. Embora sua atividade fosse vista com desdém pela sociedade da época, ela nunca prejudicou ninguém. Sempre que surgiam problemas, ela agia com firmeza, seja chamando os seguranças para acalmar os ânimos ou enfrentando os agressores com coragem.

Em uma noite tumultuada, quando uma briga ameaçava a paz do bordel, Dona Ninete não hesitou em intervir. Empunhando uma escopeta, ela pôs fim à confusão e mostrou sua determinação em proteger seu espaço e suas meninas. Seu destemor era conhecido por todos, inclusive por um certo valentão apelidado de 'Acaba Mundo', que acabou levando um tiro nos pés como advertência.

Dona Ninete era uma mulher respeitada, que conduzia seus negócios com integridade e honestidade. Não se envolvia com drogas ou atividades ilícitas e tratava a todos com dignidade. Além de seu trabalho árduo, ela ainda praticava ações de caridade, ajudando suas meninas e contribuindo com a comunidade. Suas boas ações, no entanto, nem sempre eram reconhecidas pelos moralistas da época.

 

Em 7 de março de 2023,

 

Genílson Máximo.

 

 

sábado, 21 de outubro de 2023

Baile de confusão com Pé de Foice, lobisomem e sanfona assombrada

 

Nessa crônica, relato incidentes hilários que ocorreram no ano de 1976 em um povoado de nossa região. Houve um baile animado por um trio de forró liderado pelo sanfoneiro muito requisitado, Ganso. O trio também incluía Mangangão, que tocava a zabumba e Saruê, responsável pelo triângulo. Esse trio era conhecido por animar diversas festas em povoados da região, uma espécie cover dos Os 3 do Nordeste.

Nossa região, especialmente a sul, viu o surgimento de muitos sanfoneiros talentosos nas décadas passadas, como Patelô, Badinho, Zé Paraíba, Gonçalo do Acordeon, Zé Dinato, Zé Carlos do Acordeon, Tota Machado, Tonho Odorico, Edvaldo do Acordeon, Zé de Mateus, Zé Alvino, Zetinha, Trio Sertanejo, Neno Sanfoneiro, Toinho de Santa Luzia, entre outros.

Naquela época, os forrós “pé de serra” eram frequentes em povoados de Estância, Santa Luzia, Indiaroba, Umbaúba, Itabaianinha, Cristinápolis, entre outros municípios. As festas geralmente aconteciam em casas de chão batido, iluminados por candeeiros ou lampiões. O dono da festa molhava o chão da sala a cada hora para controlar a poeira diante o chap-chap da chinela dos dançarinos. Após meia hora de forró, com o salão lotado, era cobrada a ‘cota’, alguns pagavam, outros escapavam de fininho.

Naquela época, as mulheres não pagavam para dançar nessas festas, o que às vezes causava confusões quando uma moça recusava um convite e depois aceitava dançar com outro. Isso poderia resultar em arengas, especialmente com figuras como Pé de Foice, um zé tabacão que não hesitava em interromper as festas quando uma moça negava-lhe a dança. Ele era conhecido por ser mais agressivo do que um touro bravo, pronto para causar problemas!

Em uma noite específica, no entorno da casa, arvores frutíferas serviam de cenário para os namoricos; bancas de bebidas e tira-gostos, doces ocupavam o terreiro.  Pé de Foice, após melar o bico, teve seu convite recusado por Gabriela, filha de Mané de Terto, uma jovem notavelmente atraente, ela era uma moça de seus 17 anos; morena, de olhos verdes, de cabelos negros, compridos e lisos. Chamava atenção o conjunto da sua beleza. Gabriela preferiu dançar com um rapaz recém-chegado de São Paulo, o que enfureceu Pé de Foice.

A munganga estava feita: “Hoje você não dança mais com ninguém nesse samba”, disse Pé de Foice, agarrando-a pelo braço. Ele ficou de atalaia e viu quando Gabriela aceitou dançar com o rapaz paulistano. Pé de Foice ficou mais nervoso que potro com mosca no ouvido. Deu uma tapa com tanta força no parceiro de Gabriela, que o rapaz caiu por cima do sanfoneiro, a perder os sentidos.

De posse de um facão, Pé de Foice ameaçou matá-lo. Enfurecido, cortou o candeeiro, apagou a luz do salão de dança, não ficou ninguém para contar o resto da história, manteve o terror, forçando todos a fugirem.

Mané de Terto, no caminho de buscar sua filha a cavalo, ouviu um som de sanfona desconcertado debaixo de uma jaqueira, onde anos atrás um sanfoneiro havia sido assassinado. Sem querer contato com alma do outro mundo, ficou tão apavorado que partiu com pressa, afirmando para quem encontrou no caminho que a alma do sanfoneiro, Testa de Bode, estava fazendo penitência; não sabia que era o sanfoneiro Ganso que havia fugido com a sanfona devido ao medo de Pé de Foice.

Mas, para completar o fovoco da noite, ainda teve a suspeição que havia aparecido um lobisomem na cercania. As pessoas que voltavam do forró, devido à briga, caminhavam numa estrada de rodagem ladeada de cercas que dividiam as propriedades, entre uma e outra, havia uma cancela.   Ouviam-se tropéis, noite escura, às cegas, acharam que era o tropel do lobisomem, bem como ouviam o som das cancelas a baterem no mourão. Ficaram tão apavoradas que não sabiam para onde correr: se voltavam para a casa do forró, onde estava Pé de Foice ou enveredavam entre os laranjais para se esconderem. No entanto, esses tropéis eram, na verdade, causados ​​pelo cavalo de Mané de Terto, que galopava assustado após ouvir a sanfona sob a jaqueira no escuro da noite.

 

Em 20 de outubro de 2023.

Genílson Máximo.