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Mostrando postagens com o rótulo Crônica

A Mula sem Cabeça também assustou gente em Estância

A região Nordeste do Brasil, a terceira maior em extensão, atrás apenas das regiões Norte e Centro-Oeste, é composta por nove estados e oferece uma contribuição expressiva à cultura nacional. Sua diversidade cultural, folclórica e religiosa reflete a riqueza de seu povo, cuja formação resulta de uma profunda miscigenação. O imaginário nordestino é único, forjado a partir da síntese cultural entre indígenas, africanos e europeus, sobretudo portugueses. Essa fusão moldou a identidade cultural do Nordeste, que se manifesta até hoje em suas expressões artísticas, como música, dança, culinária, religião e, particularmente, em seu folclore vibrante. Chegando ao tema central deste texto, o folclore, é curioso notar como, embora algumas lendas não estejam tão presentes nas conversas cotidianas como em décadas passadas, ainda ocupam um lugar especial na memória coletiva, especialmente entre os mais velhos. A lenda da Mula sem Cabeça ou Mula-de-Padre é um dos mitos mais difundidos do folclore

A bodega de Seu Ciço: memórias de uma infância em Estância

Ele não media esforços para atender bem o cliente  Que belas lembranças da década de 70! É verdade que o tempo passa rápido, mas certas memórias conseguem nos transportar de volta a uma época mais simples e cheia de encantos. Relembrar a infância e os elementos que compunham o cotidiano daqueles tempos nos envolve numa doce nostalgia. Nas manhãs de domingo, os meninos dos bairros Botequim, Porto D'Areia, Santa Cruz, da Rua da Usina, da Rua da Bahia e da Rua da Rosa se reuniam no Jardim Velho — atualmente conhecido como Praça Orlando Gomes — para colher oitis maduros. Depois, desciam pela Rua do Cravo e faziam uma parada obrigatória na Bodega do Seu Ciço, na Rua da Baixa. Ali, Seu Ciço os recebia calorosamente, oferecendo balas, pirulitos e chupa-chupas. Embora não tivesse filhos, ele nutria um carinho especial pela molecoreba que frequentava sua bodega. Naquela época, era comum as crianças irem tomar banho na maré, em um lugar chamado “Os Portinhos”, na parte baixa da Rua do A

O gorgolejo do peru do prefeito alegrou a tarde

Numa pacata cidadezinha do interior, o prefeito era um homem de múltiplas paixões: a medicina e a arte de receber bem. Admirado e respeitado por todos no município, ele não só cuidava da saúde da população, mas também era conhecido por sua hospitalidade calorosa. Em feriados e fins de semana, sua casa tornava-se um ponto de encontro para o secretariado municipal e amigos, onde política se entrelaçava com amizades, regadas a conversas envolventes e uma gastronomia impecável. Essas reuniões eram eventos aguardados ansiosamente. O som inconfundível das latinhas de cerveja sendo abertas, com o típico “pssst” que acompanha a liberação do gás, trazia consigo a promessa de refrescância, enquanto o aroma inebriante do feijão-tropeiro dominava o ambiente. Petiscos variados cobriam a mesa, despertando apetites e suscitando um clima de celebração que se espalhava na área gourmet no quintal. O prefeito era um anfitrião nato, que recebia cada convidado com uma alegria genuína. Sua casa, sempre ab

Onze anos de saudades: a vida exemplar do ex-prefeito Pedro Siqueira

  Agosto deste ano marca os 11 anos de saudade de Pedro Barreto Siqueira, empresário, ex-prefeito, ex-deputado e proprietário da Casa Vitória, uma icônica loja que prosperou por décadas na Rua Capitão Salomão, em Estância. Pedro Siqueira era um homem de alma generosa, sempre disposto a ajudar o próximo e a contribuir com a cultura local. Com sua conversa sempre afável e encantadora, ele cultivava o hábito de dialogar com amigos e conhecidos que cruzavam o passeio de sua loja. Muitas tardes, Pedro era visto relaxando em uma cadeira, desfrutando da sombra e da brisa que ali passava. Sempre trazia uma frase de sabedoria na ponta da língua, como a que costumava citar de Friedrich Nietzsche: “Aquilo que se faz por amor está sempre além do bem e do mal.” Lembro-me de uma vez, ao passar pela Casa Vitória, de ter me encontrado com ele. Aproveitamos o momento para trocar ideias sobre diversos temas. Ele, com sua tranquilidade característica, falou sobre sua gestão como prefeito de Estânci

Os deficientes intelectuais mais queridos de Estância

Os deficientes intelectuais mais queridos da cidade Nas décadas de 70, 80 e 90, a cidade de Estância foi habitada por indivíduos que, à primeira vista, aparentavam possuir deficiência intelectual, sendo frequentemente vistos perambulando pelas ruas. Hoje, em contrapartida, graças às políticas públicas em vigor, não mais testemunhamos situações iguais nas vias urbanas como ocorria no passado. Essas políticas ergueram patamares de respeito e valorização desses seres humanos, substituindo a indiferença de outrora por um merecido reconhecimento. Recordo-me de alguns nomes que me vêm à mente: uma senhora de 40 anos, carinhosamente conhecida como 'Carcará', era vista habitualmente sentada no meio-fio da calçada do SESP. Seus cabelos desalinhados e vestidos sujos não ocultavam sua inegável humanidade, embora sua expressão por vezes parecesse severa. Ao passarem, as pessoas a questionavam e, em resposta, ela soltava um “Tá olhando o quê, cara da peste?” Enquanto apoiava os cotovelos so

Em vez de amigo da onça, Pirão foi amigo do gato

Era um dia de domingo, reunidos peladeiros de final de semana, ávidos por ‘bater um baba’, a bola já aparentava desgaste, mesmo assim, era latente o desejo pelo certame. Um dos amigos, apelidado de ‘Cotovelo’ - pernambucano aperfeiçoado em Estância, ganhava a vida como Mestre de Obras -, era o encarregado de pegar de casa em casa os peladeiros. Possuía um fusquinha ano 74, já enfadado pelo tempo de uso, de cor vermelha, pintura queimada. Há quem diga que com um arame e um alicate qualquer uma arruma o Fusca. Parece ser verdade, pois, Cotovelo transportava um caixote no porta-malas onde continha quase outro fusca desmontado. Tinha de tudo! Quanto ao ‘bater um baba’, a expressão me fazia curioso, não sabia ao certo a etimologia da expressão. À época, dei-me com um muro na cara e segui na escuridão. Com ajuda dos robôs do Google, hoje, saciei minha curiosidade. O nosso caso se deu em 1982, ano em que a Seleção montada por Telê era das melhores, só tinha craques, equipe que encantou o mund

A figura imaginária do Papa-Figo continua viva

imagem ilustrativa: tinha essa imagem o carro do PaPa-Figo O temido Papa-Figo assombrava a infância nas cidades do Nordeste durante as décadas de 60 e 70. As crianças da época sentiam um profundo temor apenas ao ouvir seu nome. A crença popular associava o Papa-Figo a uma figura sinistra que se alimentava do fígado de crianças, alimentando assim o medo que permeava a imaginação infantil. Em um estudo realizado pela Universidade Estadual da Paraíba, especulou-se que, no imaginário coletivo, o Papa-Figo poderia ter sido uma figura afetada por doenças como hanseníase (popularmente conhecida como lepra) ou doença de Chagas, que causa inflamação no fígado. Essas possíveis enfermidades contribuíram para a construção desse personagem sombrio. Os pais, preocupados com o bem-estar de seus filhos, orientavam que eles não aceitassem presentes de estranhos, pois acreditavam que indivíduos desconhecidos que ofereciam brinquedos e doces eram enviados pelo Papa-Figo. O simples avistamento de um car

Vida na Vila: entre o futebol, as fofocas e o sabor do cotidiano

Foto ilustrativa Os fatos que irei relatar nesta crônica ocorreram na década de 1970, um momento em que o país estava imerso nas emoções da Copa do Mundo. A Seleção Brasileira de 1970 foi, sem dúvida, uma das que reuniu maiores craques que o futebol brasileiro já viu em uma Copa do Mundo. Durante horas, os brasileiros se voltaram para os aparelhos de rádio e TVs, deixando temporariamente de lado a Ditadura Militar que assombrava o país. A habilidade e destreza de craques como Jairzinho, Rivelino, Gérson e Pelé, entre outros, levava os brasileiros à loucura. Foi nessa atmosfera que nos mudamos para uma vila no Porto d'Areia, uma propriedade do Sr. Dioclécio, nas proximidades da Escola Gilberto Amado. A vila era composta por dez casinhas e um banheiro comunitário que desembocava em uma trilha em direção à maré. Lembro-me vividamente de Dona Merentina de Pompilo, que, logo cedinho, batia de porta em porta com sua voz que lembrava o piado de uma mãe-da-lua e seu sorriso desdentado, per

Zé de Antero, o homem que botou o lobisomem para correr

O caso a ser discorrido adveio num final de semana de dezembro de 2008 e traz uma narrativa rica em detalhes culturais e folclóricos, coisas que só existem no interior. A convite de um amigo de longa data, Zé de Antero, fomos à sua casa no povoado Alto do Cheiro, no município de Riachão do Dantas, para desfrutar de um dia na roça. Ao chegarmos à cidade, inspirado por uma melodia de um conhecido forrozeiro da região, Zetinha, fiz questão de visitar a igreja de Nossa Senhora do Amparo, Padroeira da Cidade. Isso me trouxe à memória a história de um garotinho chamado Augusto Sérgio, que, em 1966, ao tocar o sino no momento da elevação da missa, sofreu um acidente ao cair da torre. Ele foi socorrido e levado para o hospital de Lagarto, falecendo durante a viagem. Na época, o acontecimento abalou a cidade e a região. Riachão do Dantas, município do Centro-Sul Sergipano, ganhou notoriedade nacional devido a reportagens de TVs sobre o Bode Bito. Esse animal vivia solto pelas ruas e praças, gos

O legado de Dona Ninete: uma história de coragem e empoderamento feminino

Homenagem a uma guerreira esquecida na história Março é um mês repleto de homenagens às mulheres, e com toda razão! Elas são as responsáveis por colorir o mundo, trazendo à vida tantas outras vidas. São verdadeiros anjos da guarda em carne e osso, guerreiras incansáveis. No entanto, muitas vezes são esquecidas pelo tapete vermelho e pelos holofotes sociais, relegadas à invisibilidade nas estradas da vida. Na década de oitenta, em Estância, às margens da BR-101, existiam os famosos bordéis, conhecidos como "Casas Obscenas". Uma figura proeminente nesse cenário era Dona Ninete, uma mulher forte e destemida. Sempre elegantemente vestida, com cores vibrantes e adornada com joias, ela cativava com seu perfume e sua presença marcante. Com 1,70m de altura, cabelos cacheados e uma vaidade única, seus feromônios aguçavam os desejos masculinos. No seu bordel, Dona Ninete acolhia mulheres pobres e donas de casa que fugiam de situações de violência doméstica. Era o porto seguro para tant

Baile de confusão com Pé de Foice, lobisomem e sanfona assombrada

  Nessa crônica, relato incidentes hilários que ocorreram no ano de 1976 em um povoado de nossa região. Houve um baile animado por um trio de forró liderado pelo sanfoneiro muito requisitado, Ganso. O trio também incluía Mangangão, que tocava a zabumba e Saruê, responsável pelo triângulo. Esse trio era conhecido por animar diversas festas em povoados da região, uma espécie cover dos Os 3 do Nordeste. Nossa região, especialmente a sul, viu o surgimento de muitos sanfoneiros talentosos nas décadas passadas, como Patelô, Badinho, Zé Paraíba, Gonçalo do Acordeon, Zé Dinato, Zé Carlos do Acordeon, Tota Machado, Tonho Odorico, Edvaldo do Acordeon, Zé de Mateus, Zé Alvino, Zetinha, Trio Sertanejo, Neno Sanfoneiro, Toinho de Santa Luzia, entre outros. Naquela época, os forrós “pé de serra” eram frequentes em povoados de Estância, Santa Luzia, Indiaroba, Umbaúba, Itabaianinha, Cristinápolis, entre outros municípios. As festas geralmente aconteciam em casas de chão batido, iluminados por c

João Barriga, o homem de duas vidas

“João Barriga” era um homem versátil que exerceu várias profissões ao longo da vida. Ele trabalhou como aguadeiro, vendendo água em burros. Depois, se tornou dono de uma carroça puxada por uma junta de bois, transportando pedras e materiais de construção. Posteriormente, substituiu essa carroça por uma carroça puxada por um burro, mas eventualmente perdeu esses recursos. João Esídio dos Santos (João Barriga) viveu na Rua de São Cristóvão, no bairro Santa Cruz durante toda a sua vida. Era casado com a senhora Sofia Ferreira dos Santos e tinham nove filhos juntos. Durante a minha adolescência, eu conheci dois dos seus nove filhos, Caquinho e Nenê, já falecidos! João Barriga era conhecido, também, por ser um exímio bebedor de cana e não tinha problemas em meter o pé na jaca. Costumava bater ponto na bodega do saudoso João Lídio, vizinho à Estação Rodoviária, no bairro sede do Santa Cruz Esporte Clube. Imergindo um pouco mais no passado, vamos lembrar-nos da construção da Estação Rod

O Trio Elétrico Luminosidade deixou sua marca no carnaval de Rua de Estância

  Nos anos 80, o carnaval de Rua de Estância buscava seu auge, que só ocorreria mais tarde. Na minha adolescência, a festa de Momo era animada pela presença tímida de blocos carnavalescos como Amantes do Samba e Os Gaviões. A escola de Samba Mangueira ocasionalmente dava o ar da graça. Nivaldo Silva Carvalho, um homem dos sete instrumentos, empresário forte e bem estabelecido na região, deu um grande impulso ao carnaval daquela década quando construiu um belíssimo Trio Elétrico em um ônibus. Isso foi uma sensação naquela época, já que nada parecido era visto na região sul do estado. Esse Trio Elétrico foi montado e equipado pelo saudoso Sr. Benjamin de Souza Alves, conhecido como 'Seu Benjamin'. Além de suas habilidades de construção do citado trio, ele também era um operador de cinema no Cinema São João e um homem de inteligência excepcional. Dominava  com maestria a arte de Johann Gutenberg e pintava manualmente os outdoors com os títulos dos filmes em cartaz, que eram expost

Os aguadeiros e as antigas fontes de Estância

Imagem do Google: ilustrativa Durante minha infância e pré-adolescência, testemunhei a presença frequente dos vendedores de água, conhecidos como 'aguadeiros', que transportavam barris de água em jumentos, oferecendo seus serviços de porta em porta e de bairro em bairro. Esses aguadeiros anunciavam: "Olhe a água, freguesa! Água boa, fresquinha, limpinha". As pessoas saíam de suas casas com suas vasilhas, eram abastecidas e pagavam pelo serviço. Os aguadeiros desempenharam um papel importante no fornecimento de água potável às famílias, especialmente porque a maioria não tinha água encanada em suas residências. O Serviço Autônomo de Água e Esgoto (SAAE) só foi criado em 28 de novembro de 1967, durante o primeiro mandato do prefeito Raymundo Silveira Souza (1967/1970). Esse marco representou o início de uma nova era na vida dos estancianos e gradualmente reduziu a presença dos vendedores ambulantes de água. Mesmo após a criação do SAAE, muitas famílias continuaram compr