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Mostrando postagens com o rótulo Crônica

Zé Combrogó: o facão, os tambores e os fantasmas da rua do cemitério

  Quando Zé Combrogó conheceu Etelvina, o mundo parou. Não literalmente — a terra seguiu girando, a oficina seguia lotada e o Opala do sargento ainda fazia barulho de chocalho —, mas o coração do cabra deu aquela falhada de pistão cansado na friagem da manhã. Etelvina era filha do carroceiro Buiu – nome de quem já carrega nas costas tanto sabedoria quanto carga em subida. Ela tinha um sorriso que fazia até Santo Antônio dar uma repensada nos votos. Pele preta feito noite sem lua, olhar de quem tem conexão direta com os ancestrais e cabelo de comercial de xampu que nunca chega na prateleira da farmácia. Era o tipo de mulher que você olha e pensa: “rapaz... isso é patrimônio tombado pelo coração da república.” Casaram-se no grito do amor e na teimosia que só a paixão rega. Zé pediu a mão, o braço e o que mais tivesse disponível. A vida de casado começou numa casinha simples, honesta, e, por puro deboche do destino, plantada atrás de um cemitério. Isso mesmo: um cemitério, como qu...

A mangueira de Jorge Leite: fruto, memória e silêncio cantante

  No coração da Praça Princesa Isabel, no bairro Santa Cruz, existe uma mangueira que segue firme, soberana, como guardiã do tempo. Continua ali — frondosa, altiva, exuberante. Mas o que ela já viveu... ah, isso eu conto agora, enquanto olho pra ela daqui mesmo, de onde escrevo. Ela sempre esteve ali, bem em frente à antiga casa do saudoso senador Júlio Leite — residência onde Dr. Jorge Leite morou por toda a vida. Sem dúvida nenhuma, foi o zelador sentimental dessa praça. Ninguém sabe ao certo quantos anos ela tem. Ainda não sei! Mas lembro bem da sua copa carregada, especialmente durante a estação das mangas. Era como se o céu se escondesse entre os galhos, de tanto fruto madurinho, amarelo, com aquele perfume doce que tomava conta do ar. Bastava uma cair no chão com aquele sonoro “buf” — e pronto: a criançada corria, disputando a fruta como se fosse troféu. Jorge Leite, sempre discreto, gostava de assistir a tudo da sua varanda. Ficava ali, sentado, vendo os passarinh...

Maria Rosa, a Rosa de Carretéis: flor que jamais murcha na memória do filho

  Houve um tempo em que a vida não se media em relógios, mas em chuvas que tardavam e colheitas que se esperavam. Nesse tempo, nasceu no povoado Carretéis, em Itabaianinha, agreste de Sergipe, uma menina chamada Maria Rosa. Filha do agricultor José Máximo, era feita de barro, sol e suor. Cresceu entre raízes de mandioca e sacas de farinha. Não teve escola nem caderno, mas aprendeu com a enxada e a reza, com o silêncio das noites cortadas pelo coaxar dos sapos e o sonho de uma vida mais justa. Desde cedo, a menina olhava o horizonte como quem pressentia que a vida lhe pediria mais. “Deus me fez pequena de corpo, mas grande de coragem” , pensava. Aos dezoito anos, partiu com a mala leve, carregando mais coragem que roupas. Aracaju a recebeu com as portas do trabalho abertas, mas não as da facilidade. Tornou-se empregada doméstica em casas de família, servindo com dignidade, sem perder o brilho dos olhos cor de mel. Ali conheceu um homem e, dele, a esperança de uma gravidez. Mas o...

O esguicho do caldo do pitu me fez perder a camisa nova

Num desses dias em que a inspiração nos dá um sacolejo no juízo, resolvi sacudir as lembranças, espanar o pó do tempo e, entre uma linha e outra, compus essa crônica para eternizar um episódio que, ao meu ver, é da mais pura essência faceciosa. Era tarde de um domingo, 23 de maio de 2010, e a cidade de Gumercindo Bessa estava num rebuliço só. Pelos quatro cantos se ouvia o fuxico da campanha eleitoral que se aproximava. Os festejos juninos já batiam à porta, e em cada beco, rua e esquina, respirava-se uma mistura de política com aquele gostinho de "Salva Junina", tradição das boas que fecha com chave de ouro o mês de maio. Naquele dia, o telefone tocou. Do outro lado, a voz já conhecida do meu amigo — o sempre atencioso médico e forrozeiro de carteirinha — doutor Gilson Andrade. Perguntou: — E aí, o que tá fazendo? Respondi com sinceridade: — Tô dando bando no cachorro! Riu e, sem pestanejar, me chamou para acompanhá-lo numa visita à casa da amiga Maria do Flau, ali ...

Deu Quiproquó no Forró de Chão Batido

  No ano da graça de 1976, no agreste profundo de um município que só aparece no mapa se a gente der zoom com fé, aconteceu uma das noites mais atrapalhadas já vistas num forrobodó regional. Tudo começou num baile animado por um trio de forró que era uma cópia sem vergonha, mas competente, d’Os 3 do Nordeste. O sanfoneiro era Ganso — um cabra magro feito vara de pescar, mas que tirava som da sanfona como se tivesse pacto com Santo Lua. No zabumba, vinha Mangangão, gordo que só ele, que suava igual tampa de chaleira; e no triângulo, o invocado Saruê, que tocava com tanta empolgação que vez em quando perdia o compasso e seguia mesmo assim, com cara de quem tava certo. A festança se deu numa casa de chão batido, com candeeiro pendurado no meio do salão, balançando como se dançasse também. O dono da casa, Seu Minervino, passava hora em hora com balde d’água pra molhar o chão, senão o chap-chap do chinelo do povo fazia levantar poeira que até gritava por socorro. Nesse tipo de f...

O “Labisone” da Fonte Nova

Imagem gerada pela IA   No povoado de nome bordado — Flor de Veado — vive Keké, 22 anos, forte como pé de umbu. Trabalha na cidade durante a semana. Na sexta, volta e vira dono do terreiro. É baixinho, vaidoso e falante. Além de bom de serviço, mantém o galinheiro em ordem de prateleira. Cria galinha caipira, capão e galo. Tira ovo fresco todo dia. Na roça, cultiva batata, macaxeira, cenoura, couve, quiabo e um coentro cheiroso que faz a vizinhança salivar. Conta com a ajuda dos dois irmãos e do pai, barbeiro de conversa afiada. Se tem coisa que Keké não perde é prosa com rabo de saia. Namora muito e, como galo-anão, só se engraça com mulher mais alta. Mania que dá trabalho. No sábado, o sítio vira feira. Gente de todo canto aparece atrás da galinha gorda, da macaxeira fresca e da conversa comprida. Keké se exibe. — Essas galinhas são criadas com amor, milho e respeito! — anuncia, peito estufado. O que faz a roda ferver são as histórias. Quando os amigos juntam e a cerveja ...

Popó, o Engraxate Monumental de Estância

Imagem ilustrativa - IA   Por Genílson Máximo — 24 de maio de 2025   Estância, essa joia do sul sergipano, parece ter saído das páginas de um romance de Jorge Amado — não por acaso, o escritor baiano se refugiou aqui nos anos 1930, fugindo da repressão do Estado Novo. Encantou-se. Disse que nosso povo era “o mais cordial do mundo” e, segundo os bastidores da literatura, teria se inspirado em figuras estancianas para criar personagens como Tieta e os jovens de Capitães da Areia .   E não é difícil entender o fascínio. Estância tem vocação pra tudo: indústria têxtil, agricultura, pecuária, produção de cítricos, festa junina com 30 dias de fogueira acesa, carnaval com escolas de samba — o único do interior sergipano —, berço da imprensa estadual, pioneira na radiodifusão do interior e sede de uma diocese que abrange mais de 15 municípios. Mas, se há algo que Estância produz como ninguém, é personagem. Foi num daqueles dias de janeiro em que até a sombra da catedral s...

A bodega de Seu Ciço: memórias de uma infância em Estância

Que belas lembranças da década de 70! É verdade que o tempo passa rápido, mas certas memórias conseguem nos transportar de volta a uma época mais simples e cheia de encantos. Relembrar a infância e os elementos que compunham o cotidiano daqueles tempos nos envolve numa doce nostalgia. Nas manhãs de domingo, os meninos dos bairros Botequim, Porto D'Areia, Santa Cruz, da Rua da Usina, da Rua da Bahia e da Rua da Rosa se reuniam no Jardim Velho — atualmente conhecido como Praça Orlando Gomes — para colher oitis maduros. Depois, desciam pela Rua do Cravo e faziam uma parada obrigatória na Bodega do Seu Ciço, na Rua da Baixa. Ali, Seu Ciço os recebia calorosamente, oferecendo balas, pirulitos e chupa-chupas. Embora não tivesse filhos, ele nutria um carinho especial pela molecoreba que frequentava sua bodega. Naquela época, era comum as crianças irem tomar banho na maré, em um lugar chamado “Os Portinhos”, na parte baixa da Rua do Aquidabã. Ali, um banco de areia branca, cercado por inga...

Serenata, mijo e fuga: noturnas de um Brasil em sol maior

Se me permite destampar o baú de lembranças, trago aqui um episódio daqueles que fariam Noel Rosa rir com o canto desafinado da história. Era início dos anos 80, e eu era parte de uma trupe musical noturna, dessas que desafiam o sono, o bom senso e, às vezes, até a polícia. Era 1983. Enquanto o país começava a apagar as luzes da Ditadura Militar, nós acendíamos as nossas — de lampião emocional, regadas a pandeiro e violão. Éramos quatro: eu, Arlinaldo, David e o inesquecível “Som” — filho do mestre Cocoré, referência quando o assunto era cordas e cutucões rítmos. O palco? As ruas caladas do Porto D’Areia e outras da cidade. Às sextas, por volta das 23h30, o Jardim Velho nos recebia como a um quarteto clássico... de boteco. A voz era afinada na coragem e o repertório brotava do nosso surrado caderninho de letras, onde desfilavam canções de Benito di Paula, Fernando Mendes, José Augusto, Roberto Carlos, Sidney Magal e companhia sentimental. Às vezes, o jovem Unaldo — um quase-ídolo d...

De Paconga a Toloco: personagens que fizeram história com humor

Ah, Estância! Nas décadas de 70, 80 e 90, essa nossa querida cidade era palco de personagens peculiares, indivíduos que, embora aparentassem ter alguma deficiência intelectual, conquistavam um lugar cativo no coração de todos. Eles faziam parte do cotidiano das ruas, sempre deixando suas marcas por onde passavam. Hoje, graças a avanços nas políticas públicas, é raro vermos figuras assim perambulando pelas vias, mas a memória desses tempos é tão viva quanto as piadas que nos faziam rir. Se hoje há respeito e inclusão, naquela época o humor ácido e irreverente era o jeito de lidar com essas figuras icônicas. Lembro-me de 'Carcará', uma senhora de seus quarenta anos, conhecida tanto por seus cabelos desgrenhados quanto pelo vocabulário afiado. Ela se sentava na calçada do SESP, olhando o infinito com a testa franzida, como quem estivesse prestes a resolver os mistérios do universo. Só que o universo parecia não colaborar muito, porque, a cada passada de alguém, ela soltava: “Tá ...

O cão comedor de pintos de João Fala Fina

A notícia que circulou freneticamente nas redes sociais na última semana trouxe-me à mente um amigo de velha data, João Fala Fina. Homem conhecido pela sua capacidade de inventar histórias, jurava de pés juntos que seu cão subia paredes atrás de lagartixas e que seu gato, imagine só, gostava de tomar banho na gamela. Mas a última patranha foi a mais curiosa: agora, o seu cachorro virou comedor de pinto. João Fala Fina tem uma galinha preta, dessas de pescoço pelado, que orgulhosamente desfilava pelo terreiro com uma ninhada de 15 pintos. Um verdadeiro desfile maternal! Enquanto isso, o seu cachorro, o famigerado 'Corró', passava os dias com o cão do vizinho, Sr. Mauro, um cão caçador nato, especialista em pegar perdizes. “De tanto andar junto com o cachorro do Mauro, o Corró desenvolveu uma nova habilidade: começou a exterminar os pintos aqui de casa. Agora, basta ouvir um piado que já vai direto!", lamentava João. Eu estava conversando com João Fala Fina quando, de repent...