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Zé Combrogó: o facão, os tambores e os fantasmas da rua do cemitério

 


Quando Zé Combrogó conheceu Etelvina, o mundo parou. Não literalmente — a terra seguiu girando, a oficina seguia lotada e o Opala do sargento ainda fazia barulho de chocalho —, mas o coração do cabra deu aquela falhada de pistão cansado na friagem da manhã.

Etelvina era filha do carroceiro Buiu – nome de quem já carrega nas costas tanto sabedoria quanto carga em subida. Ela tinha um sorriso que fazia até Santo Antônio dar uma repensada nos votos. Pele preta feito noite sem lua, olhar de quem tem conexão direta com os ancestrais e cabelo de comercial de xampu que nunca chega na prateleira da farmácia. Era o tipo de mulher que você olha e pensa: “rapaz... isso é patrimônio tombado pelo coração da república.”

Casaram-se no grito do amor e na teimosia que só a paixão rega. Zé pediu a mão, o braço e o que mais tivesse disponível. A vida de casado começou numa casinha simples, honesta, e, por puro deboche do destino, plantada atrás de um cemitério. Isso mesmo: um cemitério, como quem resolve dividir cerca com o além.

Zé, que até então lidava com carro batido e alguns clientes caloteiros, agora dava conta de clientes desencarnados. Não era pouca coisa: gemido, vulto, cochicho indecente e sombra dançante à meia-noite. Tudo isso, claro, depois de uns bons tragos de cruaca — aquela cachaça artesanal que parece fermentada com raiva, fermento vencido e despacho mal interpretado.

“Eu vi, com esses olhos que a terra ainda vai saborear! Um cabra de branco, mascando chiclete, me pediu pra abaixar o volume da novela!”, berrava ele, mais suado que radiador de Kombi em rampa.

Etelvina, mulher de fibra e paciência olímpica, mandava:
— Vai dormir, Zé. E leva esse facão contigo. Vai que o espírito só quer tua vaga no sofá.

Mas Zé ficava todo ouriçado. Botava a cadeira na porta e encarava o portão do cemitério como quem espera Uber. E tome cruaca. E tome aparição.

Numa dessas, jurou de pé junto — e joelho mole — que deu carona pra um espírito até a BR-101.
— Etelvina, o defunto me pediu pra descer na frente do matadouro! Pela alma da Brasília azul que não passa no DETRAN desde 1975!

Etelvina suspirava, não por medo, mas por luto antecipado da cachaça boa que nunca mais veria. Sabia: quando Zé via alma, o copo já tinha passado da conta e da compostura.

Enquanto isso, a oficina bombava. Zé era mecânico estrela da região — um tipo de cardiologista de motores. E ninguém ligava muito pros surtos espirituais.
— Quem conserta Chevette 78 no ouvido, merece ver defunto de vez em quando — diziam.

Mas o verdadeiro bicho-papão não era do além: era o ciúme. Ah, o ciúme... esse sim era residente fixo, batia ponto. E quando descobriu que Etelvina frequentava o terreiro do Pai Betinho, o bicho pegou.

Zé Combrogó era cismado com o tal terreiro. Não por espírito, mas por espírito de porco. Diziam que lá baixava um guia chamado Mamador, que gostava de importunar as mulheres. E aí, meu amigo, quando Zé bebeu o bastante pra achar que era imune a orixá e incorporação, fez o que nenhum bebum deve fazer: pegou o facão e foi dar sermão em entidade.

Num dia de gira, com tambor pegando e espírito girando, Zé entrou no terreiro como se estivesse roçando mato: no grito e na panada.
— Cadê os caboco daqui, cadê?!

Derrubou vela, rasgou altar, mandou ver no facão como quem está podando a paciência do plano espiritual. O guia que tava incorporado no Pai Betinho desincorporou na hora e saiu pelos fundos puxando o pai de santo. Os filhos de santo pularam a janela como se a Receita Federal tivesse anunciado blitz de CPF.

Detalhe: Etelvina nem estava lá. Tava era virando noite na tecelagem, tentando pagar a conta de luz e a conta moral do marido.

Depois desse episódio, a cidade nunca mais foi a mesma. O facão de Zé virou lenda — diziam que vibrava sozinho perto de bebum. Zé, por sua vez, virou personagem: uma mistura de mecânico, exorcista e doido varrido com carteirinha.

Ah, o apelido... Porque ninguém nasce “Combrogó”. Isso se conquista. E Zé conquistou com método, desejo e um grau de voyeurismo que faria a polícia bater palma e prender ao mesmo tempo.

Nos tempos de calça curta, já era mecânico das próprias vontades. Foi flagrado diversas vezes pendurado na goiabeira, espiando a viúva do outro lado do muro por um buraco no combrogó — aquela cerquinha de arame e pudor. A goiabeira virou arquibancada; o combrogó, janela da safadeza. E Zé, o periscópio humano do bairro.

 

Autor: Genílson Máximo
Em 18 de setembro de 2025