Quando Zé Combrogó conheceu Etelvina, o mundo parou. Não literalmente — a terra seguiu girando, a oficina seguia lotada e o Opala do sargento ainda fazia barulho de chocalho —, mas o coração do cabra deu aquela falhada de pistão cansado na friagem da manhã.
Etelvina
era filha do carroceiro Buiu – nome de quem já carrega nas costas tanto
sabedoria quanto carga em subida. Ela tinha um sorriso que fazia até Santo
Antônio dar uma repensada nos votos. Pele preta feito noite sem lua, olhar de
quem tem conexão direta com os ancestrais e cabelo de comercial de xampu que
nunca chega na prateleira da farmácia. Era o tipo de mulher que você olha e
pensa: “rapaz... isso é patrimônio tombado pelo coração da república.”
Casaram-se
no grito do amor e na teimosia que só a paixão rega. Zé pediu a mão, o braço e
o que mais tivesse disponível. A vida de casado começou numa casinha simples,
honesta, e, por puro deboche do destino, plantada atrás de um cemitério. Isso
mesmo: um cemitério, como quem resolve dividir cerca com o além.
Zé, que
até então lidava com carro batido e alguns clientes caloteiros, agora dava
conta de clientes desencarnados. Não era pouca coisa: gemido, vulto, cochicho
indecente e sombra dançante à meia-noite. Tudo isso, claro, depois de uns bons
tragos de cruaca — aquela cachaça artesanal que parece fermentada com raiva,
fermento vencido e despacho mal interpretado.
“Eu vi,
com esses olhos que a terra ainda vai saborear! Um cabra de branco, mascando
chiclete, me pediu pra abaixar o volume da novela!”, berrava ele, mais suado que
radiador de Kombi em rampa.
Mas Zé
ficava todo ouriçado. Botava a cadeira na porta e encarava o portão do cemitério
como quem espera Uber. E tome cruaca. E tome aparição.
Etelvina
suspirava, não por medo, mas por luto antecipado da cachaça boa que nunca mais
veria. Sabia: quando Zé via alma, o copo já tinha passado da conta e da
compostura.
Mas o
verdadeiro bicho-papão não era do além: era o ciúme. Ah, o ciúme... esse sim
era residente fixo, batia ponto. E quando descobriu que Etelvina frequentava o
terreiro do Pai Betinho, o bicho pegou.
Zé
Combrogó era cismado com o tal terreiro. Não por espírito, mas por espírito
de porco. Diziam que lá baixava um guia chamado Mamador, que gostava de importunar as mulheres. E aí, meu amigo,
quando Zé bebeu o bastante pra achar que era imune a orixá e incorporação, fez
o que nenhum bebum deve fazer: pegou o
facão e foi dar sermão em entidade.
Derrubou
vela, rasgou altar, mandou ver no facão como quem está podando a paciência do
plano espiritual. O guia que tava incorporado no Pai Betinho desincorporou
na hora e saiu pelos fundos puxando o pai de santo. Os filhos de santo pularam
a janela como se a Receita Federal tivesse anunciado blitz de CPF.
Detalhe:
Etelvina nem estava lá. Tava era virando noite na tecelagem, tentando pagar a
conta de luz e a conta moral do marido.
Depois
desse episódio, a cidade nunca mais foi a mesma. O facão de Zé virou lenda —
diziam que vibrava sozinho perto de bebum. Zé, por sua vez, virou personagem:
uma mistura de mecânico, exorcista e doido varrido com carteirinha.
Ah, o
apelido... Porque ninguém nasce “Combrogó”. Isso se conquista. E Zé conquistou
com método, desejo e um grau de voyeurismo que faria a polícia bater palma e
prender ao mesmo tempo.
Nos
tempos de calça curta, já era mecânico das próprias vontades. Foi flagrado
diversas vezes pendurado na goiabeira, espiando a viúva do outro lado do muro
por um buraco no combrogó — aquela cerquinha de arame e pudor. A goiabeira
virou arquibancada; o combrogó, janela da safadeza. E Zé, o periscópio humano
do bairro.