Por: Ivan Leite
Aquela noite ainda vive em mim como uma chama que
o tempo não apaga. Era época de campanha, e eu, então deputado estadual, estava
em cima da carroceria de um caminhão, discursando para a multidão que se
espremia na praça de Tomar do Geru. O ar carregava o cheiro de poeira, gasolina
e esperança. Quando eu terminasse, seria a vez de Pedrinho Balbino — o
candidato a prefeito — falar. A cidade parecia conter a respiração, como se
pressentisse que algo maior do que um simples comício estava prestes a
acontecer.
No meio do meu discurso, senti uma presença atrás
de mim. Uma voz apressada, quase sussurrando, disse:
— Deputado, pare de falar. O delegado mandou avisar que não pode comício depois
da meia-noite.
Olhei para o relógio: já passava da hora. Mas, sem interromper a fala, apenas
girei o corpo e respondi, firme:
— Diga a ele que o horário só é limitado até a meia-noite no último dia de
campanha. E hoje ainda não é o último.
Continuei. As palavras ganhavam força, mas logo o
mesmo emissário voltou, insistente:
— Ele disse que é pra parar.
Senti o clima mudar. O ar ficou pesado, denso.
Então alterei o tom do discurso, tentando acalmar os ânimos. Falei sobre a
verdadeira coragem — não a dos que gritam ou ameaçam, mas a dos humildes, dos
que lutam em silêncio pela paz e pela justiça.
E foi nesse instante que o microfone emudeceu. O
som cortou de repente, como se o próprio ar tivesse sido rasgado. Alguém correu
até mim e gritou:
— O delegado cortou o cabo do microfone com um facão!
A praça inteira pareceu se inclinar no susto. Mas
eu continuei, gritando o resto do discurso a plenos pulmões, sem microfone, sem
medo. Pedrinho, então, saltou do caminhão onde estávamos e subiu no caminhão da
banda, que esperava o fim do comício para tocar. Ligou o som e começou a
discursar com aquela voz que incendiava os corações.
Foi quando alguém, com o rosto tenso, me
sussurrou:
— Vão atirar em Pedrinho.
Não pensei. Apenas agi. Pulei do caminhão e subi
no outro, me colocando diante dele, como um escudo humano. Enquanto ele falava
ao povo, eu repetia baixinho:
— Termina logo, Pedrinho. Acaba logo esse discurso...
O medo era real, palpável. Cada segundo parecia
um fio de navalha. Quando enfim ele terminou, desceu e fomos direto para a casa
de sua mãe, Dona Maria, ali na praça. Acolhidos pela penumbra do lar e o cheiro
de café recém-passado, deixei Pedrinho sob a guarda de amigos — um deles,
policial —, e voltei à praça para conversar com o delegado.
Pedi que deixasse a banda tocar um pouco, para
que a multidão se dispersasse devagar. Queria evitar tumulto, permitir que os
caminhões levassem o povo de volta aos povoados, que os carros saíssem sem
correria. O delegado, dep
ois de me encarar longamente, concordou. A tensão
ainda pairava no ar como nuvem antes da tempestade.
Voltei à casa de Dona Maria – mãe de Pedrinho
- e insisti para que ele saísse da
cidade naquela noite. Ele resistia — dizia que não podia abandonar o povo
naquele momento. Mas, com o apoio da família e muita conversa, conseguimos
convencê-lo. Partimos em um fusquinha: Raimundinho ao volante, eu no banco da
frente e Pedrinho atrás. Fomos escoltados por uns dois ou três carros de amigos
até a BR-101, as luzes das lanternas piscando como vaga-lumes naquela madrugada.
Quando chegamos a Estância, pedi para descer em
casa. Raimundinho seguiria até Aracaju, levando Pedrinho em segurança. Mas,
antes de continuar viagem, ele quis tomar um café — já era alta madrugada, e o
cansaço pesava. Levantei o banco para que Pedrinho pudesse sair também.
Foi então que vimos a cena que me acompanharia
por décadas: ele dormia profundamente, com um revólver entre as pernas,
segurado com as duas mãos, como quem sonha em meio à guerra e teme acordar
desarmado.
Trinta anos se passaram, e ainda me pergunto onde
encontrei coragem para agir como agi naquela noite. Às vezes penso que a
coragem é uma visita breve — chega sem avisar, exige tudo e vai embora deixando
o coração em silêncio.
Na eleição seguinte, Pedrinho foi eleito
prefeito, e eu, novamente candidato a deputado estadual, tive ali a maior
votação da minha carreira: mais de dois mil votos. Se alguém hoje me
perguntasse se eu faria tudo de novo, consciente, só poderia rir e responder:
— De jeito nenhum.
Mas, no fundo, sei que certas noites não nos
pedem escolha. Elas apenas nos convocam — e nós atendemos.
Ivan Leite – 26/10/2025
Ex-deputado Estadual (1990/1998).
Ex-prefeito de Estância (2005/2012).
https://parabolicanews.blogspot.com/2025/10/a-noite-em-que-tomar-do-geru-escolheu.html
