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Ivan Leite: A Noite em que Tomar do Geru Escolheu a Mudança – II

 

Por: Ivan Leite

Aquela noite ainda vive em mim como uma chama que o tempo não apaga. Era época de campanha, e eu, então deputado estadual, estava em cima da carroceria de um caminhão, discursando para a multidão que se espremia na praça de Tomar do Geru. O ar carregava o cheiro de poeira, gasolina e esperança. Quando eu terminasse, seria a vez de Pedrinho Balbino — o candidato a prefeito — falar. A cidade parecia conter a respiração, como se pressentisse que algo maior do que um simples comício estava prestes a acontecer.

No meio do meu discurso, senti uma presença atrás de mim. Uma voz apressada, quase sussurrando, disse:
— Deputado, pare de falar. O delegado mandou avisar que não pode comício depois da meia-noite.
Olhei para o relógio: já passava da hora. Mas, sem interromper a fala, apenas girei o corpo e respondi, firme:
— Diga a ele que o horário só é limitado até a meia-noite no último dia de campanha. E hoje ainda não é o último.

Continuei. As palavras ganhavam força, mas logo o mesmo emissário voltou, insistente:
— Ele disse que é pra parar.

Senti o clima mudar. O ar ficou pesado, denso. Então alterei o tom do discurso, tentando acalmar os ânimos. Falei sobre a verdadeira coragem — não a dos que gritam ou ameaçam, mas a dos humildes, dos que lutam em silêncio pela paz e pela justiça.

E foi nesse instante que o microfone emudeceu. O som cortou de repente, como se o próprio ar tivesse sido rasgado. Alguém correu até mim e gritou:
— O delegado cortou o cabo do microfone com um facão!

A praça inteira pareceu se inclinar no susto. Mas eu continuei, gritando o resto do discurso a plenos pulmões, sem microfone, sem medo. Pedrinho, então, saltou do caminhão onde estávamos e subiu no caminhão da banda, que esperava o fim do comício para tocar. Ligou o som e começou a discursar com aquela voz que incendiava os corações.

Foi quando alguém, com o rosto tenso, me sussurrou:
— Vão atirar em Pedrinho.

Não pensei. Apenas agi. Pulei do caminhão e subi no outro, me colocando diante dele, como um escudo humano. Enquanto ele falava ao povo, eu repetia baixinho:
— Termina logo, Pedrinho. Acaba logo esse discurso...

O medo era real, palpável. Cada segundo parecia um fio de navalha. Quando enfim ele terminou, desceu e fomos direto para a casa de sua mãe, Dona Maria, ali na praça. Acolhidos pela penumbra do lar e o cheiro de café recém-passado, deixei Pedrinho sob a guarda de amigos — um deles, policial —, e voltei à praça para conversar com o delegado.

Pedi que deixasse a banda tocar um pouco, para que a multidão se dispersasse devagar. Queria evitar tumulto, permitir que os caminhões levassem o povo de volta aos povoados, que os carros saíssem sem correria. O delegado, dep
ois de me encarar longamente, concordou. A tensão ainda pairava no ar como nuvem antes da tempestade.

Voltei à casa de Dona Maria – mãe de Pedrinho -  e insisti para que ele saísse da cidade naquela noite. Ele resistia — dizia que não podia abandonar o povo naquele momento. Mas, com o apoio da família e muita conversa, conseguimos convencê-lo. Partimos em um fusquinha: Raimundinho ao volante, eu no banco da frente e Pedrinho atrás. Fomos escoltados por uns dois ou três carros de amigos até a BR-101, as luzes das lanternas piscando como vaga-lumes naquela madrugada.

Quando chegamos a Estância, pedi para descer em casa. Raimundinho seguiria até Aracaju, levando Pedrinho em segurança. Mas, antes de continuar viagem, ele quis tomar um café — já era alta madrugada, e o cansaço pesava. Levantei o banco para que Pedrinho pudesse sair também.

Foi então que vimos a cena que me acompanharia por décadas: ele dormia profundamente, com um revólver entre as pernas, segurado com as duas mãos, como quem sonha em meio à guerra e teme acordar desarmado.

Trinta anos se passaram, e ainda me pergunto onde encontrei coragem para agir como agi naquela noite. Às vezes penso que a coragem é uma visita breve — chega sem avisar, exige tudo e vai embora deixando o coração em silêncio.

Na eleição seguinte, Pedrinho foi eleito prefeito, e eu, novamente candidato a deputado estadual, tive ali a maior votação da minha carreira: mais de dois mil votos. Se alguém hoje me perguntasse se eu faria tudo de novo, consciente, só poderia rir e responder:
— De jeito nenhum.

Mas, no fundo, sei que certas noites não nos pedem escolha. Elas apenas nos convocam — e nós atendemos.

 

Ivan Leite – 26/10/2025

Ex-deputado Estadual (1990/1998).
Ex-prefeito de Estância (2005/2012).

 

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