No ano da graça de 1976, no agreste profundo de um município que só aparece no mapa se a gente der zoom com fé, aconteceu uma das noites mais atrapalhadas já vistas num forrobodó regional.
Tudo
começou num baile animado por um trio de forró que era uma cópia sem vergonha,
mas competente, d’Os 3 do Nordeste. O sanfoneiro era Ganso — um cabra magro
feito vara de pescar, mas que tirava som da sanfona como se tivesse pacto com
Santo Lua. No zabumba, vinha Mangangão, gordo que só ele, que suava igual tampa
de chaleira; e no triângulo, o invocado Saruê, que tocava com tanta empolgação
que vez em quando perdia o compasso e seguia mesmo assim, com cara de quem tava
certo.
A
festança se deu numa casa de chão batido, com candeeiro pendurado no meio do
salão, balançando como se dançasse também. O dono da casa, Seu Minervino,
passava hora em hora com balde d’água pra molhar o chão, senão o chap-chap do chinelo do
povo fazia levantar poeira que até gritava por socorro.
Nesse
tipo de festa, as mulheres não pagavam. Era tradição. Mas isso também dava pano
pra manga. Tininha, filha de Mané de Terto — uma moça morena, dos olhos cor de
mel e cabelo preto escorrido que nem água de mina — resolveu não aceitar o
pedido de dança de Pé de Foice, conhecido também como Zé Tabacão: um cabra mais
ranzinza que porco espinho.
Tininha
escolheu dançar com um rapaz novo, recém-chegado de São Paulo. E foi aí que o
bicho pegou. Pé de Foice, que já tinha molhado o bico mais do que devia, ficou
com a cara mais amarrada que tripa de bode seco. Foi lá e cravou:
— Hoje
ocê num dança mais com ninguém nesse samba, Tininha!
E nem
esperou resposta. Ficou de tocaia que nem gato em porta de ratoeira, e quando
viu o tal paulista rodando a moça, meteu-lhe um tapa tão retado que o cabra
voou por cima do sanfoneiro, derrubando Ganso e a sanfona com ele. O salão
virou um pandemônio.
E como
não bastasse a munganga, Pé de Foice puxou um facão da cintura e apagou o
candeeiro com um sopro que parecia de alma penada. Escuridão total. Só se ouvia
grito, cadeira caindo, gente pulando janela, véia rezando em latim e um cabra
gritando que tinha perdido as alparcatas.
Enquanto
isso, Mané de Terto vinha montado em seu cavalo, vindo buscar a filha. Quando
passou perto da velha jaqueira — onde, diziam, Testa de Bode, um sanfoneiro
enfezado, tinha sido assassinado — ouviu
um som de sanfona arrastado, dissonante, que parecia vir do além. Arregalou os
olhos, ficou branco como vela e disparou no galope, gritando:
— Vôte,
alma do Testa de Bode tá fazendo penitência!
Mas não
era alma nenhuma. Era Ganso, o sanfoneiro, que tinha se escondido debaixo da
árvore com a sanfona no colo e o coração na boca, achando que Pé de Foice vinha
atrás dele ainda.
O
furdunço não acabou aí. No caminho de volta, o povo que fugia do forró
caminhava por uma estradinha cercada de arame farpado e cancelas que rangiam
mais do que porta de armário velho. Começaram a ouvir tropéis na escuridão e
juraram que era o lobisomem, vindo completar o serviço da alma penada. Gente se
benzia, caía, se embolava no mato. Uma tia perdeu a dentadura e outro cabra
jurava que viu o bicho pulando a cerca e uivando — quando na verdade era só o
cavalo de Mané de Terto, solto e assustado, batendo cancela com o rabo.
No outro
dia, Mané de Terto já tava na feira de Santa Luzia, contando que escapou por um
triz da alma do sanfoneiro e do lobisomem. A história cresceu tanto que, uma
semana depois, já diziam que a jaqueira tava chorando de noite e que a sanfona
tocava sozinha nas luas cheias.
E Pé de
Foice? Sumiu do mapa por uns tempos. Mas reapareceu no mês seguinte vendendo
bíblias e jurando que tinha se convertido.
Só no interior mesmo pra um forró virar filme de terror com trilha
sonora ao vivo. E quem viveu, vive contando — cada vez com mais detalhes, é
claro.
Em 20 de outubro de 2023.
Genílson Máximo.