Entre o som do tiro e o silêncio da fome, um menino aprendeu cedo que sobreviver seria sua maior lição.
Por Genílson Máximo*
Na periferia esquecida, a infância de Charles foi moldada pela violência e
pela ausência. Criado entre grades e silêncios, ele representa milhares de
meninos brasileiros órfãos de Estado, de afeto e de oportunidades. Uma história
sobre o eco da pobreza que atravessa gerações.
O estampido que marcou o início
A primeira lembrança de Charles não é o colo da
mãe, nem o aconchego de um brinquedo. É o som de um tiro ecoando pela viela. Aos seis anos, ele assistiu ao
assassinato do pai, envolvido com o crime. Aquele disparo não matou apenas um
homem — abriu uma ferida que atravessaria gerações.
O episódio marcou o começo de uma vida sem rede
de proteção. O que viria depois — pobreza extrema, abandono, prisões, perda —
parecia já escrito nas paredes descascadas da casa da avó, Dona Belina.
O refúgio de Dona Belina
A casa simples, de paredes claras e chão de
cimento, era o abrigo de Charles, da irmã Branca e da mãe viúva.Dona Belina,
aos 65 anos, era o esteio de uma família sustentada pelo cansaço. Vendia
milho-verde nas festas juninas, fazia faxinas em casas de família, lavava,
passava e cuidava de idosos. Tinha as mãos rachadas, mas o coração firme.
“Ela era o tipo de mulher que não reclamava. Só
dizia: ‘Deus não vai me deixar faltar força’”, relembra Dona
Clorinda, vizinha e amiga de longa data. “Às vezes eu via as crianças
na grade, olhando a rua. Chamava: ‘Venham aqui tomar um suquinho com
biscoito’. Era o que eu podia fazer. A fome deles doía na gente.”
Clorinda era o elo de solidariedade mais próximo
da família. Mulher de voz mansa e fé simples, conhecia os silêncios da pobreza.“A
mãe deles se perdia de novo e de novo. Dona Belina carregava o peso de todos.
Dava pra ver o cansaço nos olhos dela”, recorda, emocionada.
As grades da infância
A rotina era sempre a mesma. Enquanto a mãe e a
avó buscavam o sustento, Charles e Branca ficavam sozinhos, atrás da grade da
porta. Dali observavam o mundo — o vendedor de picolé, os meninos jogando bola,
os carros passando — sem jamais fazer parte dele. Quando a fome apertava,
pediam ajuda aos vizinhos.
“Minha mãe e minha vó foram trabalhar”, diziam, como quem pede desculpas pela
necessidade.
A frase
virou o escudo da sobrevivência.
Com o tempo, a infância se confundiu com a
espera: da mãe que não voltava, da comida que demorava, da sorte que nunca
vinha.
O ciclo que se repete
A mãe de Charles foi presa pela primeira vez aos
27 anos, envolvida com o tráfico. Libertada meses depois, tentou um recomeço
como doméstica. Mas a rotina de carências, as más influências e a ausência de
apoio psicológico a empurraram de volta ao mesmo destino: novo relacionamento
com um homem do crime, nova prisão, novos filhos. Dessa vez, os mais novos
ficaram com o pai biológico. Charles e Branca voltaram a depender totalmente da
avó. O companheiro da mãe, baleado em um acerto de contas, desapareceu após
fugir do hospital. Era o retrato da violência que rondava a família.
O colapso
Entre o trabalho, o sustento e a preocupação
constante, o corpo de Dona Belina cedeu. Um infarto fulminante encerrou a resistência daquela mulher que sustentava
sozinha uma casa e um destino. Com sua morte, a estrutura ruiu. Branca, aos 16
anos, engravidou.
Charles, aos 14, canalizou o luto em raiva. Tornou-se indisciplinado, agressivo
na escola e vulnerável às ruas.O menino que via o mundo pela grade agora
cruzava a linha entre vítima e algoz.
“Depois que a avó dele morreu, o menino se
perdeu”, diz Dona Clorinda, com os olhos marejados. “A gente tentava ajudar,
mas faltava tudo. E quando falta tudo, o erro vira o caminho mais fácil.”
Realidade nacional
📊 Números que revelam a urgência:
·
Mais de 3,8 milhões de crianças
brasileiras vivem em situação de extrema pobreza (IBGE, 2023);
·
65% dos adolescentes em
conflito com a lei têm histórico de abandono familiar (Ipea);
· Em comunidades periféricas, a presença de uma figura de referência — como avós ou vizinhos solidários — reduz em até 40% o risco de envolvimento com o crime.
Casos como o de Charles mostram que a ausência de apoio institucional e a
sobrecarga das cuidadoras — quase sempre mulheres idosas — formam uma combinação
letal.
O eco do abandono
Hoje, Charles é um adolescente revoltado. O
menino doce que esperava a avó voltar do trabalho agora caminha armado. Não é
um monstro; é o produto de um sistema que falhou em cada etapa.
A escola não o reteve. O Estado não o acolheu. A
sociedade desviou o olhar. E a avó, que lutou até o limite, morreu sem ver o neto escapar daquilo que
sempre temeu.
“Eu lembro dele pequeno, brincando com uma
tampinha de garrafa”, conta Dona Clorinda. “A gente não imagina que aquele
menino um dia possa virar notícia.”
A pergunta que ecoa
A história de Charles não é apenas sobre um destino individual, mas sobre a herança de um país que permite que meninos cresçam atrás de grades — sejam elas de ferro ou de invisibilidade. Por trás de cada assalto, de cada manchete sobre violência, pode haver um Charles — uma criança faminta, órfã de cuidado e esquecida nas estatísticas.
E a pergunta persiste, incômoda e urgente:
Quantos Charles continuam sendo moldados pela herança do caos?
*Genílson Máximo é jornalista e escreve sobre histórias
humanas que revelam as desigualdades, os silêncios e as resistências que
atravessam o Brasil profundo. Em suas reportagens, transforma a dor em reflexão
e dá voz aos personagens esquecidos pelas estatísticas.
Registro Profissional – 0002.613/SE.
Em 20 de outubro de 2025.