Ao destampar o baú
de memórias, permita-me compartilhar um episódio hilário dos tempos em que eu
fazia parte de um grupo musical ambulante, percorrendo as ruas noturnas da
cidade sob o brilho prateado da lua, em contraste com as luzes urbanas. Era uma
época em que entoávamos canções icônicas, navegando na crista da onda musical
daquela era turbulenta. No ano de 1983, enquanto o país vivenciava o
encerramento das cortinas da Ditadura Militar, ainda havia resquícios do temor
e das torturas perpetradas por homens de boinas verdes.
A trupe de seresteiros era composta por quatro membros: eu, Arlinaldo, David, e "Som". Nossa base era o bairro do Porto D'Areia. Eu morava na Rua da Tamanca, Arlinaldo na Rua do Pompeu. "Som", filho do mestre Cocoré, morava em frente à Maçonaria, e David residia na Rua do Arame. Às vezes, Unaldo (jovem com fumaças de cantor) se juntava a nós, brindava-nos com canções da sua autoria, nos cativando com sua destreza como intérprete e compositor.
Nossos encontros semanais, geralmente às sextas-feiras, ganhavam vida no Jardim Velho por volta das 23h30. Éramos um quarteto itinerante pelas vias adjacentes, derramando alegria ao som de violão e pandeiro. Nossas melodias ecoavam na noite, preenchendo as ruas e praças. Antes do nascer do sol, a estrela-da-manhã lembrava-nos a hora de voltar para casa.
A paixão pela música nos aproximou do sargento Nelson, comandante do TG-06-013, que mesmo em tempos de temor da baioneta, ocasionalmente nos convidava para sua residência. Apesar das "imprecisões" musicais que cometia, nós aceitávamos de bom grado o convite e passávamos horas a fio cantando ao lado desse amigo de farda verde.
Muitas pessoas apreciavam nossas serenatas, acendiam a luz do quarto ou da sala, observavam a doçura musical no silêncio da noite. Outros resmungavam, nossa melodia era levada pela brisa da noite, acalentando corações sedentos de amor e paixão.
Naqueles tempos, os grupos musicais "Unidos em Ritmo", liderado por Pimentel, e "Os Cometas", de Gumercindo, faziam o frisson entre a juventude. Havia uma rivalidade velada entre ambos. Nosso grupo se infiltrava em seus ensaios ávido por aprimorar os conhecimentos musicais e, assim, brilhar durante nossos concertos noturnos.
Arlinaldo era nosso maestro, um exímio violonista. Eu, Som e David nos revezávamos no pandeiro, criando o ritmo contagiante e também contribuindo como vocalistas. Canções de Benito di Paula, Luiz Ayrão, José Augusto, Fernando Mendes, Gilberto Gil, Sidney Magal e Roberto Carlos preenchiam as páginas desgastadas do nosso surrado caderninho de músicas.
Chegava o momento em que o violão pedia afinação. Arlinaldo o levava até "Zé Pequeno", um hábil tocador de violão que também cortava cabelo em um salão próximo ao GBARBOSA nas horas vagas. Ocasiões também em que levávamos o instrumento para o Sr. Cocoré, pai de Edgar, Fauna e Flora; outras vezes passava pelas mãos do experiente Celso do Cavaquinho e, também, de Seu Manoel do Violão. Todos tinham habilidades com instrumentos de corda.
Num sábado, por volta de uma hora da madrugada, quando cantávamos na esquina da Rua da Rosa com a Rua Santa Luzia, uma senhora abriu a janela e sem piedade, nos "presenteou" com um malcheiroso pinico de mijo, banhando a todos nós.
Para culminar o revés da noite, um camburão repleto de policiais parou. O policial esbravejou: "Vou ali e se ao voltar vocês ainda estiverem aqui, levo todos presos para cantarem na prisão". E partiu em direção ao Cemitério da Cruz Vermelha.
Enquanto nos recompúnhamos do banho involuntário de mijo, o camburão deu meia volta, acionou a sirene e voltou rapidamente em nossa direção. "Som" se abrigou sob uma carroça de burro estacionada na Rua Santa Luzia; David disparou em direção à Rua da Baixa e desapareceu. Corri para a Rua da Boa Viagem e encontrei abrigo em cima de uma caçamba estacionada. Arlinaldo, com o violão a tiracolo, escondeu-se no Campo do Cruzeiro. Para sorte dele, naquela noite a portinha lateral do campo estava aberta.
Na época, a Delegacia de Polícia funcionava no prédio que atualmente é sede da SMTT. Quem era detido, naquele tempo, tinha a sorte grande de não ter que tomar o famoso "chá-da-meia-noite".
Em 24 de julho de
2017, Genílson Máximo
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