domingo, 11 de maio de 2025

Serenata, mijo e fuga: noturnas de um Brasil em sol maior


Se me permite destampar o baú de lembranças, trago aqui um episódio daqueles que fariam Noel Rosa rir com o canto desafinado da história. Era início dos anos 80, e eu era parte de uma trupe musical noturna, dessas que desafiam o sono, o bom senso e, às vezes, até a polícia.

Era 1983. Enquanto o país começava a apagar as luzes da Ditadura Militar, nós acendíamos as nossas — de lampião emocional, regadas a pandeiro e violão. Éramos quatro: eu, Arlinaldo, David e o inesquecível “Som” — filho do mestre Cocoré, referência quando o assunto era cordas e cutucões rítmos. O palco? As ruas caladas do Porto D’Areia e outras da cidade.

Às sextas, por volta das 23h30, o Jardim Velho nos recebia como a um quarteto clássico... de boteco. A voz era afinada na coragem e o repertório brotava do nosso surrado caderninho de letras, onde desfilavam canções de Benito di Paula, Fernando Mendes, José Augusto, Roberto Carlos, Sidney Magal e companhia sentimental. Às vezes, o jovem Unaldo — um quase-ídolo da MPB local — se juntava com suas composições próprias, um tanto ousadas, um tanto geniais, como todo bom compositor em início de carreira.

E nós não saíamos de mãos abanando: levávamos, debaixo do braço, uma garrafa de vinho de gengibre Vernon e, numa vasilha Tupperware, tainhas torradas, crocantes, preparadas pela mãe de Arlinaldo. Aquilo era nosso encanto — uma espécie de banquete boêmeo em plena noite.

A música nos levava a lugares insólitos. E às vezes nos jogava de volta. Uma madrugada, enquanto cantávamos na esquina da Rua da Rosa com a Rua Santa Luzia, fomos gentilmente agraciados com um pinico transbordando mijo — atirado da janela por uma senhora insone e sem apreço pela arte. Digamos que... a crítica foi líquida e direta.

Como se o banho de urina não bastasse, um camburão estacionou logo depois. O policial desceu num humor oposto ao nosso e anunciou, dedo em riste:
— "Vou ali no cemitério Cruz Vermelha. Se ao voltar vocês ainda estiverem aqui, vão todos presos. E lá a serenata continua... só que no xilindró."

Meia volta, lá vem o camburão de sirene ligada. Fomos tomados por um pânico operístico. “Som” mergulhou sob uma carroça de burro como quem busca o último esconderijo do apocalipse. David sumiu Rua da Baixa adentro. Eu escalei uma caçamba estacionada na Rua da Boa Viagem como se fosse o palco do Maracanãzinho. Arlinaldo, com o violão nas costas, evaporou rumo ao Campo do Cruzeiro. Sorte dele: a portinha lateral estava destrancada.

Em tempos de chumbo e medo, nossas noites eram feitas de afinação, fuga e sonhos desafinados. O sargento Nelson, comandante do TG-06-013, era um caso à parte. Entre uma ameaça e outra dos militares, nos convidava para cantar em sua casa. Tinha um ouvido mais generoso que técnico — o tipo de fã que não repara nos erros porque está ocupado demais vibrando com a emoção.

A comunidade nos acompanhava como podia. Alguns miravam pelas janelas e deixavam os rostos curiosos surgirem na penumbra. Outros apenas resmungavam e puxavam a coberta — nossos acordes eram como mosquitos sentimentais, zumbindo amor e nostalgia pela madrugada. Havia ainda os que nos ofereciam tira-gostos, bebidas e, claro, pediam uma música especial, daquelas que lhes agradavam os ouvidos e acalentavam o coração.

Os conjuntos musicais “Unidos em Ritmo” e “Os Cometas” (rivais) eram os nossos ícones inspiradores, bem como visitas que fazíamos ao afinador-oficial de violão, Zé Pequeno (cortava cabelo e desafinava os desafinados, na Rua Moisés Costa Carvalho, na feira, próximo do G. Barbosa). Grande mestre das cordas!

Foram anos de serenatas e sobrevivas, de paixão melódica em tempos políticos dissonantes. Não tínhamos Spotify, mas tínhamos coragem. Não vendíamos discos, mas distribuíamos lembranças. E, olha, mesmo depois daquele banho dourado e do susto com o camburão, ninguém ali pensou em parar de cantar.

Afinal, como diria nosso caderninho de letras, em letra tremida por Vernon e suor:
“Enquanto houver rua e luar, haverá música — ainda que, às vezes, com gosto de mijo e cheiro de liberdade.”

 

Genílson Máximo
24 de julho de 2017

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