Era
1983. Enquanto o país começava a apagar as luzes da Ditadura Militar, nós
acendíamos as nossas — de lampião emocional, regadas a pandeiro e violão.
Éramos quatro: eu, Arlinaldo, David e o inesquecível “Som” — filho do mestre
Cocoré, referência quando o assunto era cordas e cutucões rítmos. O palco? As
ruas caladas do Porto D’Areia e outras da cidade.
Às
sextas, por volta das 23h30, o Jardim Velho nos recebia como a um quarteto
clássico... de boteco. A voz era afinada na coragem e o repertório brotava do
nosso surrado caderninho de letras, onde desfilavam canções de Benito di Paula,
Fernando Mendes, José Augusto, Roberto Carlos, Sidney Magal e companhia
sentimental. Às vezes, o jovem Unaldo — um quase-ídolo da MPB local — se
juntava com suas composições próprias, um tanto ousadas, um tanto geniais, como
todo bom compositor em início de carreira.
E
nós não saíamos de mãos abanando: levávamos, debaixo do braço, uma garrafa de
vinho de gengibre Vernon e, numa vasilha Tupperware, tainhas torradas,
crocantes, preparadas pela mãe de Arlinaldo. Aquilo era nosso encanto — uma
espécie de banquete boêmeo em plena noite.
A
música nos levava a lugares insólitos. E às vezes nos jogava de volta. Uma
madrugada, enquanto cantávamos na esquina da Rua da Rosa com a Rua Santa Luzia,
fomos gentilmente agraciados com um pinico transbordando mijo — atirado da
janela por uma senhora insone e sem apreço pela arte. Digamos que... a crítica
foi líquida e direta.
Como
se o banho de urina não bastasse, um camburão estacionou logo depois. O
policial desceu num humor oposto ao nosso e anunciou, dedo em riste:
— "Vou ali no cemitério Cruz Vermelha. Se ao voltar vocês ainda estiverem
aqui, vão todos presos. E lá a serenata continua... só que no xilindró."
Meia
volta, lá vem o camburão de sirene ligada. Fomos tomados por um pânico
operístico. “Som” mergulhou sob uma carroça de burro como quem busca o último
esconderijo do apocalipse. David sumiu Rua da Baixa adentro. Eu escalei uma
caçamba estacionada na Rua da Boa Viagem como se fosse o palco do
Maracanãzinho. Arlinaldo, com o violão nas costas, evaporou rumo ao Campo do
Cruzeiro. Sorte dele: a portinha lateral estava destrancada.
Em
tempos de chumbo e medo, nossas noites eram feitas de afinação, fuga e sonhos
desafinados. O sargento Nelson, comandante do TG-06-013, era um caso à parte.
Entre uma ameaça e outra dos militares, nos convidava para cantar em sua casa.
Tinha um ouvido mais generoso que técnico — o tipo de fã que não repara nos
erros porque está ocupado demais vibrando com a emoção.
A
comunidade nos acompanhava como podia. Alguns miravam pelas janelas e deixavam
os rostos curiosos surgirem na penumbra. Outros apenas resmungavam e puxavam a
coberta — nossos acordes eram como mosquitos sentimentais, zumbindo amor e
nostalgia pela madrugada. Havia ainda os que nos ofereciam tira-gostos, bebidas
e, claro, pediam uma música especial, daquelas que lhes agradavam os ouvidos e
acalentavam o coração.
Os
conjuntos musicais “Unidos em Ritmo” e “Os Cometas” (rivais) eram os nossos
ícones inspiradores, bem como visitas que fazíamos ao afinador-oficial de
violão, Zé Pequeno (cortava cabelo e desafinava os desafinados, na Rua Moisés
Costa Carvalho, na feira, próximo do G. Barbosa). Grande mestre das cordas!
Foram
anos de serenatas e sobrevivas, de paixão melódica em tempos políticos
dissonantes. Não tínhamos Spotify, mas tínhamos coragem. Não vendíamos discos,
mas distribuíamos lembranças. E, olha, mesmo depois daquele banho dourado e do
susto com o camburão, ninguém ali pensou em parar de cantar.
Afinal,
como diria nosso caderninho de letras, em letra tremida por Vernon e suor:
“Enquanto houver rua e luar, haverá música — ainda que, às vezes, com gosto de
mijo e cheiro de liberdade.”
Genílson Máximo
24 de julho de 2017
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