Apenas garantir um valor maior para o novo Bolsa Família - atual Auxílio Brasil - não vai ser suficiente para que o próximo governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) tenha uma política bem-sucedida no combate à pobreza. Sem depurar o Cadastro Único e focar no perfil das pessoas atendidas, o programa pode se tornar ineficiente e ter um resultado abaixo do seu potencial. E a equipe de transição do novo governo sabe que será necessário um "pente-fino" nos benefícios, de olho especialmente nas concessões individuais.
A
avaliação é que o País passou a enfrentar uma distorção no Cadastro Único.
Houve um forte crescimento na quantidade de famílias compostas por apenas um
integrante - chamadas de unipessoais - incluídas pelo programa social. Em
agosto, cerca de 5,3 milhões estavam nessa condição.
O
Ministério da Cidadania já instaurou um procedimento para averiguar o aumento
de famílias unipessoais beneficiadas e informou que também faz um
"tratamento de todo o público do Cadastro Único" em parceria com a
Dataprev.
No
caso das famílias unipessoais, a apuração vai ter início para os cadastrados
incluídos ou atualizados após novembro de 2021, quando somavam 2,2 milhões. Ou
seja, 3 milhões de beneficiários terão de atualizar os dados para evitar o
bloqueio do benefício. "Existe uma agenda de qualificação de cadastro. É
uma agenda grande e que apresenta um enorme desafio", diz Vinicius
Botelho, ex-secretário de Desenvolvimento Social e Cidadania.
No
Cadastro Único, o beneficiário faz uma autodeclaração da renda e composição
familiar. No auge da pandemia, a maneira como se deu a inscrição ajudou a
provocar uma deterioração da base de dados. Para liberar o Auxílio
Emergencial, depois transformado em Auxílio Brasil, o governo Jair
Bolsonaro possibilitou a adesão de beneficiários por meio de aplicativo,
sem a necessidade de uma grande atuação de agentes dos Centros de Referência da
Assistência Social (Cras) para, por exemplo, fazer o mapeamento dos mais pobres
e acompanhar o perfil da população inscrita.
Na
equipe de transição, a principal preocupação tem sido com a qualidade do
cadastro e com a herança que será deixada pela apuração aberta pelo Ministério
da Cidadania. "Isso vai impactar o governo, vamos assumir com um processo
em que não fomos consultados", afirma Tereza Campello, uma das
coordenadoras da área de assistência social da transição. "Não estou
reclamando de o governo ter aberto esses processos, mas deveria ter feito isso
antes."
O
novo governo também foi alertado pelo Tribunal de Contas da União (TCU)
sobre a distorção. "O governo Lula vai assumir com 1 milhão de pessoas
sendo chamadas em janeiro e 2 milhões de pessoas sendo chamadas em fevereiro
para comparecer ao Cras ou (os benefícios) vão ser bloqueados",
afirma Campello. "A pessoa não vai receber e o que ela vai fazer? Vai no
Cras tentar saber o que aconteceu. Vamos ter o governo assumindo com um monte
de fila."
Critica ao desenho
Além
da defasagem do Cadastro Único, outra grande crítica dos analistas é a de que o
desenho do atual Auxílio Brasil leva em conta a renda familiar, não a per
capita. Ou seja, famílias com dois ou seis integrantes recebem os mesmos R$
600. "Um bom desenho de programa considera a composição familiar para
definir a transferência", afirma Laura Muller Machado, professora do Insper e
ex-secretária de Desenvolvimento Social de São Paulo.
O
próximo Bolsa Família deve custar R$ 175 bilhões, conforme prevê a Proposta
de Emenda à Constituição (PEC) da Transição, que retirou o benefício do teto
de gastos e manteve o valor de R$ 600, além de criar um adicional de R$
150 por crianças com até seis anos. Se confirmado, será um montante gasto que
vai equivaler a quase cinco vezes o orçamento do programa original, que era de
R$ 33 bilhões - em valores corrigidos pela inflação, chega a R$ 41 bilhões.
"Na
atual gestão, houve uma desintermediação da política social", diz Marcelo
Neri, diretor do FGV Social. "Toda a literatura (de combate à pobreza)
está baseada na renda per capita, não na do domicílio. No desenho atual do
Auxílio Brasil, ele estima que há um desperdício de 55% de dinheiro.
"Poderia se fazer mais com os mesmos recursos."
O
formato do novo Bolsa Família, diz Tereza Campello, que atuou como ministra do
Desenvolvimento Social e Combate à Fome na administração Dilma Rousseff,
só deve ficar mais claro no novo governo. "O nosso projeto quer retomar as
principais características do Bolsa Família", afirma. "A primeira é
que o desenho levava em conta a composição familiar, e a segunda questão é que
o programa considerava fundamental que crianças e gestantes tivessem direito e
acesso à educação e à saúde."
Superação da pobreza
Mais
do que resolver a questão de curto prazo da assistência social, o Brasil tem um
desafio importante de fazer com que os beneficiários do programa social superem
a pobreza de forma definitiva.
No
ano passado, 9,5% da população brasileira vivia na situação de extrema pobreza
- com uma renda per capita mensal inferior a R$ 193 -, maior patamar desde
2007, quando 10,7% estavam nessa condição, mostram dados compilados pela
professora do Insper.
"O
desenho de um programa de porta de saída, que vai fazer com que as pessoas
alcancem uma autonomia, não está claro", afirma Laura. "O Brasil Sem
Miséria, por exemplo, era um programa bem desenhado, documentado e tinha uma
proposta de como incluir produtivamente no mercado de trabalho quem estava na
área rural e quem estava na área urbana."
Não
há uma regra para a superação da pobreza. É preciso levar em conta a realidade
de cada família e região do País. A solução pode estar em conseguir uma creche
para uma mãe solteira que precisa trabalhar ou garantir cursos de
profissionalização para um trabalhador desempregado.
"Só
transferir renda não é suficiente. São necessárias três coisas. A assistência,
claro, é uma delas, e um valor mais alto já resolve boa parte dos problemas,
mas não é suficiente", afirma Naercio Menezes, coordenador da Cátedra Ruth
Cardoso e também professor do Insper. "É preciso também ter um sistema de
educação e saúde de qualidade."
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