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O marchante Seu Quincas e a carne do nosso churrasco

Foto do Google. Ilustrativa
 
Essa crônica remonta fatos decorridos no início dos anos oitenta e tem como foco homenagear um cidadão de bem, trabalhador, que laborava como vendedor de carnes no mercado de carnes da feira-livre da nossa cidade. Joaquim Alves da Silva (Seu Quincas). Era um cidadão polido, de trato especial para com a sua clientela. Aquele que adentrasse ao Talho de Carnes era logo abordado – Freguês, aqui tem carne de primeira! Quer quantos quilos – indagava. E sempre ao final da compra fazia uma gracinha, oferecia um pequeno pedaço de carne ao freguês, às vezes um osso de correr ou costelas.

Não me vem à lembrança como iniciou, mas, vez e outra, eu, juntamente com os amigos da adolescência: Dadinho, Dudé, Caborje, Calunga, íamos à sua banca pegar uma xepa, carnes de menor valor comercial, pedaços de carnes duras, alguns ossos cobertos com uma raspinha de carnes, mas que tinha muito que aproveitar, ele fazia um peso de cerca de dois quilos e nos doava.

Nós tínhamos garantida a carne do churrasco do final de semana. À época, todos nós estudantes, sem dinheiro, então, aproveitávamos essa benevolência do senhor Quincas para reunir os amigos no sábado à noite para cantar, tocar violão. Em grupo de seis, saímos pelas ruas, praças, bairros a fazer serenatas. O petisco era levado a reboque.

O comércio das carnes, à época, era na totalidade no mercado municipal (Talho de Carnes), grande era o vai-e-vem da clientela. Frango, boi, porco, carneiro, fato, era ali exposto à clientela. Isso deixava os cães, também, a passearem pelo interior do mercado e a lamberem os beiços.

Na entrada do mercado, uma senhora com necessidade visual, de meia-idade, pedia esmola: “Me dê uma esmolinha pelo amor de Jesus”, verbalizava centenas de vezes, das sete da manhã às duas da tarde. Outra senhora, mais jovem, portadora de mudez, era inconveniente à bessa a pedir esmola, o freguês abordado, para se ver livre, tinha que atendê-la mesmo contra a vontade. A pedinte estendia a mão e esfregava o dedo polegar no dedo indicador, no movimento que lembra dinheiro, ficava na cola.

Naqueles anos compunham a geografia da feira: Loja de Zé Lino, Farmácia de Eliezer, Casa da Japonesa, Armarinho São João, GBarbosa, Farmácia de Eliezer, Café Gatão, Joca do Gás, Jadiel da Gaiola, Zé do Carmo Fotógrafo, Armarinho de Pedro Crente, Loja de Relógios de Valdomiro, Otímio Barbeiro, Milton Abdala, Armazém Antônio de Lurdes, Armazém João de Batista, Armazém de Seu Pedro Avícula, Padaria de Antônio Barreto, Supermercado Valentim, Sorveteria de Seu Vavá, Soverteria Estrela; havia uma cobertura de zinco onde funciona hoje o Beco da Fumaça, local de venda de cereais. Alguns desses espaços deram lugar a imóveis modernos.

Após pegarmos a carne de Seu Quincas, íamos à Rua do ABC ximar as cortesãs que se reuniam num inferninho: mulheres maduras, cadeirudas, de seios avantajados, de saliência abdominal, de batom vermelho amaranto, de vestido tubinho; cheirando a uma mistura de perfume barato e cigarro, cerveja e suor, erotismo em demasia. Ambiente mais gostoso que beijo de prima.

Em nossa idade, era o prato feito para quebrar a donzelice, mas, sem o faz-me rir ($), o jeito era sair em jejum. Certa feita, a conversa estava indo na direção certa, interrompida com a chegada de um policial de alcunha Lavanca, que botou urtiga na conversa. O homem era mais sério que um porco mijando, mais grosso que parafuso de patrola. Colocou-nos para fora!

Voltando ao nosso benfeitor, Seu Quincas, certo dia, quando fomos pegar a xepinha, numa manhã de sábado, ele já nos esperava com a carne separada, dois quilos, amarrada numa pindoba. A senhora pedinte, portadora de mudez, se aproximou e danou-se a pedir dinheiro pertinazmente. Dizíamos que não tínhamos, ela insistia, puxava-nos pelo braço, pela roupa, queria dinheiro.

Nesse entremeio, com o peso de carne pendurado na mão, um susto: um cão abocanhou a carne e saiu em disparada feira adentro. Dudé e Dadinho embilocaram atrás, o cão danou-se a correr, entrou no Beco da Galinha Morta (na direção do GBarbosa com o Caminho do Rio). Naquele dia não teve churrasco. O cãozinho se deu bem. 

Seu Quincas, um homem simples, generoso, batalhador, de bom coração. Um amigo especial, fazia questão de contribuir com o nosso quarteto que se reunia para cantar e fazer serestas aos finais de semanas.

A vida seguiu o seu curso natural, cada um dos amigos aqui relatados fez seu próprio caminho. Não soube mais de notícias de seu Quincas, exceto que o peso da sua idade lhe tirou da labuta. Sua banca foi ocupada por outro marchante.  Seu Quincas foi um homem de bem, sem dúvida, tem um sono tranquilo e a convicção de que os seus anos de trabalho contribuíram com o desenvolvimento da coletividade.

 

Em 09 de maio de 2023

Genílson Máximo


 

 

 

 

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