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Vida na Vila: entre o futebol, as fofocas e o sabor do cotidiano

Foto ilustrativa


Os fatos que irei relatar nesta crônica ocorreram na década de 1970, um momento em que o país estava imerso nas emoções da Copa do Mundo. A Seleção Brasileira de 1970 foi, sem dúvida, uma das que reuniu maiores craques que o futebol brasileiro já viu em uma Copa do Mundo. Durante horas, os brasileiros se voltaram para os aparelhos de rádio e TVs, deixando temporariamente de lado a Ditadura Militar que assombrava o país. A habilidade e destreza de craques como Jairzinho, Rivelino, Gérson e Pelé, entre outros, levava os brasileiros à loucura.

Foi nessa atmosfera que nos mudamos para uma vila no Porto d'Areia, uma propriedade do Sr. Dioclécio, nas proximidades da Escola Gilberto Amado. A vila era composta por dez casinhas e um banheiro comunitário que desembocava em uma trilha em direção à maré.

Lembro-me vividamente de Dona Merentina de Pompilo, que, logo cedinho, batia de porta em porta com sua voz que lembrava o piado de uma mãe-da-lua e seu sorriso desdentado, perguntando a Dona Dalvina: “Tem uma capinha de fumo para eu mascar”. A senhora Dalvina guardava sempre um bom suprimento de fumo, pois tinha o hábito de fumar cachimbo. Enquanto isso, Dona Merentina de Pompilo continuava a percorrer as casas, com uma criança de dois anos agarrada à barra de sua saia amarrotada, costumava perguntar a pequena filha: “Ô, Gevaninha, você já cagou ou ainda vai cagar”. A menina logo respondia: “Já caguei, mamãe.”

Com um pedaço de pente entalado no cabelo, Dona Merentina enxugava o nariz escorrendo da pequena com a barra do seu vestido e seguia seu caminho, sem perder o gosto pelas fofocas, de porta em porta. No corredor da pequena vila, um galo guerreche aproveitava os pedacinhos do bolachão que Gevaninha comia, enquanto um gato preguiçoso descansava sobre uma janela voltada para o nascente, na casa de Dona Dadá. Nas noites de festa junina, quando o beco ficava sem luz, a meninada soltava fogos de artifício e gritava: “Fogo no beco que o beco tá escuro”, e o fogo comia no centro! Agitava os moradores.

Numa dessas brincadeiras, um pitu de cano enroscou-se na peruca de Bebel, um jovem homossexual, morador da vila. Tirou o sapato do pé e partiu para cima da gurizada. Aconteceu um fuá danado naquela noite, todos saíram de suas casas para ver o ocorrido. Bebel desceu dos saltos, ficou mais nervosa que gato em dia de faxina. Alguns o viam de lado, outros mantinham boa relação com ele. Bebel, nas horas de folga, cortava o cabelo dos meninos, bem como dava escova no cabelo de algumas senhoras que jamais teriam como ir a um salão de beleza. Ele fazia gratuitamente.

O marido de Dona Merentina de Pompilo, popularmente conhecido como Zé Catolé, era um habilidoso pedreiro. No entanto, era chegado a ‘marvada’. Ele costumava frequentar a bodega de Zé de Anísio aos domingos logo cedo. Por ter sete filhos para sustentar, ele raramente tinha dinheiro suficiente para saciar seu desejo pela cruaca.  Apoiado no balcão, segurava um copo vazio e pedia aos clientes que tomassem um aperitivo para que ele pudesse despejar as sobras em seu copo. E assim, ele o enchia.

Após horas nessa dinâmica, quando o sol já passava do meio-dia, Zé Catolé já estava chamando urubu de beija-flor. Com o pescoço arriado, cochilava sentado e, com sua astúcia de cantor, apoquentava os fregueses cantarolando a música “O Ébrio”, de Vicente Celestino, lembrava um disco arranhado.

Seus filhos, ainda jovens, vinham buscá-lo em uma galinhota. No caminho de volta para casa, ao passarem em frente à residência de Dona Marieta, ele cantava provocadoramente: “Ai, Marieta, ai, Marieta, nem que o diabo arranque o rabo, eu não deixo a minha preta”. Isso era para tirar do sério a viúva, Dona Marieta, que havia se insinuado para ele tempos atrás, mas fora rejeitada.
Dona Marieta era viúva há cinco anos e ainda não havia contraído novas núpcias. Mulher de 37 anos, branca, de pele rosada no rosto, cabelos castanhos, quadris largos e pernas bem torneadas, gentil. Mas, como o coração é uma terra desconhecida, a bela senhora estava cada vez mais interessada em Zé Catolé.

Na vila, havia um morador bem conhecido chamado  Zé de Luzia. Era um sujeito fanfarrão, se gabava bastante e costumava se vestir com roupas brancas e chapéu de baeta. Porém, sua habilidade em trabalhos manuais era praticamente nula. Ele se apresentava como rezador e afirmava incorporar uma entidade espiritual. No entanto, de vez em quando, acabava exagerando na bebida e, ao chegar em casa durante a noite, a confusão era certa. Brigava com a esposa e até chegava a bater nos filhos. Em uma ocasião, a polícia foi chamada e, ao chegar, dada ordem de prisão. Zé de Luzia se apresentou encabocado e um policial chamado Lavanca agiu de forma enérgica, fazendo com que a  entidade espiritual se afastasse, deixando Zé de Luzia nas mãos da polícia.

Habitavam  à vila mecânicos, motoristas, costureiras, pedreiros, empregadas domésticas, rezadeiras, pescadores, pai-de-santo. Como sempre, a vila estava repleta de histórias e personagens peculiares. A senhora que vendia cerveja secretamente na ausência do marido era conhecida como Dona Eulália. Sua casa tinha uma entrada discreta nos fundos, onde os interessados em uma cerveja gelada formavam uma fila. Ela sempre foi uma mulher misteriosa, com olhos penetrantes e um jeito enigmático de lidar com as pessoas.

Enquanto isso, a vizinhança comentava sobre o “inferninho” que acontecia na casa. As fofocas corriam soltas, e os vizinhos imaginavam o que poderia estar acontecendo lá dentro da sua casa. Foi então que a descoberta de uma janela no lado do poente, nos fundos da casa, trouxe uma nova curiosidade para a garotada.

A janela era como um portal para desvendar os segredos que circulavam entre os adultos. As crianças formavam fila, esperando sua vez de espiar pelas frestas da janela e descobrir o que realmente acontecia na misteriosa casa de Dona Eulália. Entre risos e sussurros, eles compartilhavam as informações que coletavam em suas espiadas. Prato feito para os comentários de Dona Merentina de Pompilo.

Enquanto isso, a vizinhança se reunia na casa da gentil vizinha, Dona Cleuza, que possuía um pequeno aparelho de TV. As crianças se aglomeravam na sala, ansiosas para assistir aos jogos de futebol da Copa do Mundo ou para acompanhar as novelas que encantavam a todos na época. “Irmãos Coragem”, “Cavalo de Aço”, “O Semideus”, “O Bem Amado” eram algumas das tramas que prendiam a atenção da vizinhança.

Ah, como esses tempos deixaram saudades! A simplicidade, a camaradagem e a felicidade que permeavam a vila eram incomparáveis. Todos aqueles personagens, amigos, pessoas boas e humildes, deixaram uma marca profunda na memória do autor desta crônica. E é com a intenção de eternizar essas memórias que essa narrativa foi construída, como um tributo a um passado inesquecível.
 

Em 02 de novembro de 2023.
Genílson Máximo.

 

 

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