Notícias do Chile
Por Ota C Rojas.
Como muitos já estão acompanhando, há uma verdadeira
rebelião popular em curso no Chile. O país que era o exemplo sul-americano de
estabilidade e modernidade explodiu.
Quero contar um pouco de como estão as coisas por aqui desde
o início da rebelião.
Na semana passada o governo anunciou um aumento da passagem
dos ônibus e metrôs de Santiago. O aumento anunciado foi de 30 pesos, mais ou
menos 4 centavos de dólar. Um valor irrisório, se não fosse só a ponta do
iceberg. No entanto, o buraco é mais embaixo, como dizemos no Brasil.
O Chile foi um dos berços ou laboratórios do que se conhece
como neoliberalismo. Aqui, desde a ditadura de Pinochet, todo o plano econômico
dos neoliberais da Escola de Chicago foi implementado desde fins da década de
1970. A maioria dos serviços públicos foi privatizada. As universidades
públicas são todas pagas.
No Brasil, temos a ideia de que algo público é gratuito, mas
isso não é assim em vários países. No Chile, uma mensalidade em uma
universidade pública pode custar mais do que em uma universidade privada. Como
os salários das famílias são muito baixos (mais de 50% da população vive com
menos de salário mínimo), as famílias não têm dinheiro para pagar as
mensalidades. Isso gerou, há anos, um enorme problema de endividamento dos
estudantes e de suas famílias. Aqui, um estudante que termina seu curso
universitário e pode passar 10 ou 15 anos pagando os empréstimos que tomou.
A saúde pública também é paga. Não existe um SUS. Os hospitais
públicos são caóticos, todos os anos morrem milhares de pessoas nas filas de
espera. Quem tem dinheiro para pagar um plano de saúde privado acaba
comprometendo grande parte de sua renda nisso, já que os planos não cobrem
todos os gastos de atendimento hospitalário, internações, cirurgias, etc. Se
uma pessoa fica doente e se salva, seguramente sairá com uma enorme dívida que
terá que pagar pelos próximos anos.
Os direitos trabalhistas foram destruídos pela ditadura. A
jornada de trabalho é de 45 horas, as férias são de 15 dias, os trabalhadores
têm meia hora de almoço. A maioria dos sindicatos não têm nenhum poder de
negociação, já que dentro de uma mesma empresa é permitida a existência de
muitos sindicatos do mesmo setor (dentro de uma mina, por exemplo, podem
existir 20 ou 30 sindicatos). O resultado disso é que os patrões fazem o que
querem. A possibilidade de reação dos trabalhadores é pequena. E quando há
sindicatos fortes, estão na mão de burocratas que defendem mais os patrões do
que os trabalhadores.
Uma das heranças mais nefastas da ditadura é o sistema de
aposentadorias. Todo o sistema é privado. A aposentadoria dos trabalhadores é
administrada pelas AFPs, Administradoras dos Fundos de Pensão. São empresas
privadas que utilizam a enorme quantidade de recursos que é descontada todos os
meses dos salários dos trabalhadores para lucrar.
O dinheiro das aposentadorias
é utilizado para financiar os negócios dos próprios empresários, comprar ações
de empresas, etc. Os próprios donos das AFPs, que também são donos de muitas
outras empresas, bancos, seguradoras, etc., utilizam esse dinheiro para
financiar, com baixíssimas taxas de juros, seus outros negócios. É uma mina de
ouro.
Esse é o modelo de capitalização individual que Bolsonaro e Guedes
quiseram implementar já com essa Reforma da Previdência no Brasil. Ainda não
conseguiram, mas o projeto virá logo mais. Trata-se de destruir o sistema
público (INSS) para que as empresas privadas administrem o dinheiro acumulado
pelos trabalhadores.
A lógica das AFPs é nefasta. Essa enorme soma de recursos é
investida no mercado. Se há ganhos, isso fica pros acionistas das AFPs, se há
perdas, esse dinheiro é retirado da aposentadoria dos trabalhadores. E o pior,
a maioria dos trabalhadores se aposenta com menos de 30% do que recebia antes.
Isso explica em grande parte o enorme aumento do número de suicídios de idosos
na última década.
Nos últimos anos milhões de chilenos saíram às ruas de forma
pacífica contra as AFPs e defendendo a volta de um sistema público de aposentadorias
(como o nosso INSS). A resposta dos governos (de “esquerda” e de direita) foi
fazer promessas e não mudar nenhuma vírgula. Agora, pior, o governo de Piñera
(atual presidente) mandou ao Congresso uma reforma que entrega ainda mais
dinheiro para as empresas.
Nas principais empresas do país, a exploração é brutal. O
Chile é o maior produtor de cobre do mundo. Os mineiros, com um longo histórico
de lutas, e suas famílias, sofrem diariamente as consequências mais nefastas da
mineração – as doenças pulmonares (como a silicose), doenças musculares,
psicológicas, etc. Muitos mineiros trabalham longe de suas casas, em turnos de
10/10 (10 dias de trabalho, 10 de descanso), o que os leva a ter uma dinâmica
familiar muito difícil e penosa.
A situação do principal povo originário, os mapuches, é
dramática. Há séculos esse povo vem resistindo às ofensivas dos empresários e
do Estado para tomar suas terras, que se concentram principalmente na região
sul (a mais fértil) do país. Há séculos há uma verdadeira guerra contra os
mapuches.
Dito tudo isso, agora podemos voltar ao aumento da passagem.
Na semana passada, então, o governo decidiu aumentar o preço
da passagem. Um trabalhador ou uma trabalhadora que toma dois metrôs por dia
pode chegar a gastar em um mês, 1/6 do salário mínimo.
O aumento, claro, não foi bem recebido. Nos dias seguintes
ao anúncio, muitos estudantes secundaristas começaram a convocar
“pulas-catracas” nos metrôs. O movimento se massificou. O governo respondeu
dizendo que não ia diminuir o preço da passagem e colocou a polícia nas
estações de metrô. Daí pra frente a coisa foi piorando. Muitos vídeos mostram a
polícia jogando bombas de gás lacrimogênio dentro das estações, crianças
vomitando, mães chorando, policiais empurrando estudantes pelas escadas.
Obviamente o efeito dessas ações foi o aumento das manifestações.
Na sexta-feira (18) o governo militarizou completamente as
estações, diante das convocatórias massivas dos estudantes. No horário de pico
de saída dos trabalhadores, 18h-19h, o governo resolveu fechar as estações para
evitar os pulas-catracas. Essa decisão fez com que milhares de trabalhadores
não pudessem voltar às suas casas e tivessem que caminhar. Isso gerou
manifestações espontâneas em várias partes da cidade. Na sexta a noite, os conflitos
mais violentos começaram.
Em todos os bairros começaram os protestos e confrontos com
a polícia. De noite, a coisa já tinha se generalizado. Em todas os bairros da
capital já havia protestos. As famílias se somaram à juventude. A polícia
reprimiu e reprimiu. A revolta tomou um caráter mais violento. Nessa noite, 16
estações de metrô e um enorme edifício da empresa de energia Enel (localizado
na principal avenida de Santiago) foram queimados, houve saques em alguns
supermercados e barricadas por toda a cidade. A polícia já não conseguia mais
controlar as manifestações.
Na noite de sexta-feira, diante de uma enorme rebelião
popular, o governo anuncia o Estado de Emergência na cidade, restringindo os
direitos a manifestação e reuniões e passando o controle da cidade às mãos de
um general. As Forças Armadas são autorizadas a ocupar a cidade. Mais de 300
pessoas são presas.
A intervenção das Forças Armadas jogou ainda mais lenha na
fogueira. Aqui há uma enorme raiva de amplos setores sociais contra as Forças
Armadas pelo papel que tiveram na ditadura – os milhares de torturados,
assassinados e desaparecidos. A maioria dos militares envolvidos nesses casos
nunca foi punida.
A noite de sexta-feira foi de conflitos e barricadas. Não
sabíamos como iria amanhecer o dia seguinte. A presença das Forças Armadas
seguramente intimidaria os manifestantes, pensava o governo. Nada mais
equivocado.
No sábado a cidade amanheceu com panelaços e conflitos em
praticamente todos os setores populares e alguns bairros de classe-média. Os
conflitos agora não eram só com os policiais, mas com as próprias Forças
Armadas. Ontem (sábado), os protestos se expandiram para todo o país, de norte
a sul, de Arica a Magallanes.
O governo decretou estado de Emergência em Valparaíso
(cidade portuária com longa trajetória de lutas) e Concepción (uma das
principais cidades do sul). Em Santiago, muitos supermercados de grandes
empresas (Wallmart, por exemplo) foram saqueados ou queimados. Em um dos
incêndios, três pessoas morreram queimadas. Muitas farmácias e grandes lojas
foram saqueadas. Sobre os saques, há cenas muito interessantes.
Muitos deles foram protagonizados por famílias e pela
população em geral. Em um vídeo que circula pela internet é possível ver um
jovem lúmpen que sai carregando uma enorme televisão. Os trabalhadores que
organizavam a barricada, ao ver o jovem saindo com a televisão, tomam-na de
suas mãos e a atiram na fogueira da barricada. O televisor começa a arder em
chamas. Os alimentos saqueados, em vários lugares, foram repartidos pelos
trabalhadores presentes nas barricadas.
O processo é totalmente espontâneo e sem direção. Os
partidos tradicionais não conseguem controlá-lo. O governo está perdido. Ontem,
teve que retroceder e declarou a revogação do aumento da passagem. Ao mesmo
tempo, o general encarregado de Santiago, anunciou um toque de recolher a
partir das 22h. Nada poderia enfurecer ainda mais a população, que saiu às ruas
massivamente após o toque de recolher e passou a noite nas barricadas
enfrentando-se com a polícia e o exército.
Os protestos ganharam muito apoio
popular, apesar da campanha dos grandes meios de comunicação para criminalizar
os “vândalos” que estavam queimando os metrôs e saqueando os supermercados.
Entre os trabalhadores se armou também um grande debate sobre as táticas que
devem ser utilizadas no movimento, já que a destruição do transporte público ou
outros espaços públicos seguramente acabará significando uma perda para a
própria população. Mas a raiva foi incontrolável.
Os vídeos da brutalidade policial e do exército circulam sem
parar. Ontem, a cidade de Valparaíso, uma das mais combativas do país, foi
completamente ocupada por tropas do exército. Os conflitos se estenderam por
toda a noite de ontem. Muitos panelaços foram realizados de norte a sul do
país.
Hoje o dia amanheceu relativamente tranquilo. Alguns ônibus
circulavam por Santiago. O aeroporto, no entanto, não funcionou. Muitos voos
foram cancelados, o que está gerando um colapso. Logo no início da manhã
começaram as concentrações nas praças e outros lugares públicos. Na emblemática
Plaza Itália, o conflito com o exército e a polícia não pararam um minuto. Mais
incêndios, mais saques, muitas barricadas. O governo novamente anunciou o toque
de recolher para as 19h (há duas horas).
Um novo fenômeno começou a aparecer. Grupos armados de
traficantes ou relacionados com a própria polícia começam a assustar as
populações mais combativas, atacar feiras e outros pequenos negócios. Há
notícias de corte de água em vários lugares de Santiago. Os vídeos da
brutalidade das Forças Armadas não param de circular. Se ainda não há nenhum
assassinado pelas forças militares ou paramilitares, essa é uma possibilidade
grande nas próximas horas ou dias.
A fúria popular é enorme e não parece que diminuirá tão
cedo. O governo não tem outra resposta além da repressão. Já são 9 mil
militares distribuídos pelas cidades ocupadas.
Enquanto escrevo essas linhas, escuto gritos, tiros e bombas
ao lado de fora do lugar onde estou.
Bem vindos ao Chile, um oásis de modernidade e estabilidade
da América Latina.
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