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Fernandinho da 7 Desejos: música, memória e legado em Estância

Enquanto houver som, haverá 7 Desejos    Quem viveu os anos 80 e 90 em Estância sabe que a cidade não apenas tinha música — ela era música. De cada clube, praça ou praia ecoavam os sons de forrós bem marcados, guitarras com alma e batuques cheios de alegria. Era uma época em que o coração batia no compasso dos conjuntos musicais, como os lendários Os Cometas e Unidos em Ritmo, rivais discretos, mas unidos por uma mesma missão: colocar Estância para dançar. Foi nesse solo fértil, entre trilhos musicais e sons de trio elétrico, que um menino chamado Fernandinho — hoje conhecido por todos como Fernandinho da 7 Desejos — começou a rabiscar seu destino. Filho da terra e forjado na paixão sonora, ele aprendeu, como poucos, a conversar com instrumentos. Bateria, teclado, sanfona, baixo... Todos lhe respondiam como velhos amigos. Era como se o sangue que corria em suas veias pulsasse em compassos. “Guardo todos os instrumentos. Não vendi nem uma baqueta. Está tudo bem guardado”, di...

Zé Combrogó: o facão, os tambores e os fantasmas da rua do cemitério

  Quando Zé Combrogó conheceu Etelvina, o mundo parou. Não literalmente — a terra seguiu girando, a oficina seguia lotada e o Opala do sargento ainda fazia barulho de chocalho —, mas o coração do cabra deu aquela falhada de pistão cansado na friagem da manhã. Etelvina era filha do carroceiro Buiu – nome de quem já carrega nas costas tanto sabedoria quanto carga em subida. Ela tinha um sorriso que fazia até Santo Antônio dar uma repensada nos votos. Pele preta feito noite sem lua, olhar de quem tem conexão direta com os ancestrais e cabelo de comercial de xampu que nunca chega na prateleira da farmácia. Era o tipo de mulher que você olha e pensa: “rapaz... isso é patrimônio tombado pelo coração da república.” Casaram-se no grito do amor e na teimosia que só a paixão rega. Zé pediu a mão, o braço e o que mais tivesse disponível. A vida de casado começou numa casinha simples, honesta, e, por puro deboche do destino, plantada atrás de um cemitério. Isso mesmo: um cemitério, como qu...

A mangueira de Jorge Leite: fruto, memória e silêncio cantante

  No coração da Praça Princesa Isabel, no bairro Santa Cruz, existe uma mangueira que segue firme, soberana, como guardiã do tempo. Continua ali — frondosa, altiva, exuberante. Mas o que ela já viveu... ah, isso eu conto agora, enquanto olho pra ela daqui mesmo, de onde escrevo. Ela sempre esteve ali, bem em frente à antiga casa do saudoso senador Júlio Leite — residência onde Dr. Jorge Leite morou por toda a vida. Sem dúvida nenhuma, foi o zelador sentimental dessa praça. Ninguém sabe ao certo quantos anos ela tem. Ainda não sei! Mas lembro bem da sua copa carregada, especialmente durante a estação das mangas. Era como se o céu se escondesse entre os galhos, de tanto fruto madurinho, amarelo, com aquele perfume doce que tomava conta do ar. Bastava uma cair no chão com aquele sonoro “buf” — e pronto: a criançada corria, disputando a fruta como se fosse troféu. Jorge Leite, sempre discreto, gostava de assistir a tudo da sua varanda. Ficava ali, sentado, vendo os passarinh...

Maria Rosa, a Rosa de Carretéis: flor que jamais murcha na memória do filho

  Houve um tempo em que a vida não se media em relógios, mas em chuvas que tardavam e colheitas que se esperavam. Nesse tempo, nasceu no povoado Carretéis, em Itabaianinha, agreste de Sergipe, uma menina chamada Maria Rosa. Filha do agricultor José Máximo, era feita de barro, sol e suor. Cresceu entre raízes de mandioca e sacas de farinha. Não teve escola nem caderno, mas aprendeu com a enxada e a reza, com o silêncio das noites cortadas pelo coaxar dos sapos e o sonho de uma vida mais justa. Desde cedo, a menina olhava o horizonte como quem pressentia que a vida lhe pediria mais. “Deus me fez pequena de corpo, mas grande de coragem” , pensava. Aos dezoito anos, partiu com a mala leve, carregando mais coragem que roupas. Aracaju a recebeu com as portas do trabalho abertas, mas não as da facilidade. Tornou-se empregada doméstica em casas de família, servindo com dignidade, sem perder o brilho dos olhos cor de mel. Ali conheceu um homem e, dele, a esperança de uma gravidez. Mas o...

Porto D’Areia: ganha-pão de mulher preta

Foto ilustrativa: Pinterest No tecido urbano do pitoresco enclave do bairro Porto D’Areia, aninhado em Estância, repousa uma narrativa gloriosa, um testemunho crítico na tessitura da identidade desta urbe. Este é um espaço onde vestígios arquitetônicos reverberam um período áureo de primazia na indústria e no comércio, quando as águas do rio Piauí eram o fluído vital da economia local. Entre as ruínas dos antigos trapiches, ergue-se majestosa a chaminé da extinta Fábrica de Óleos Vegetais "Luso Brasileira". E é neste cenário que ecoam ainda hoje as vozes ecoantes das mulheres negras, cujo labor incansável forjou a própria alma de Porto D’Areia. Recordo-me dos dias dourados de minha infância, quando residia na Rua José Pires, popularmente conhecida como Rua da Tamanca, testemunhando a imprescindível contribuição das mulheres negras e pardas, muitas delas privadas do acesso à educação formal. Eram elas os esteios de suas famílias, laborando sem descanso para prover o sustent...

O esguicho do caldo do pitu me fez perder a camisa nova

Num desses dias em que a inspiração nos dá um sacolejo no juízo, resolvi sacudir as lembranças, espanar o pó do tempo e, entre uma linha e outra, compus essa crônica para eternizar um episódio que, ao meu ver, é da mais pura essência faceciosa. Era tarde de um domingo, 23 de maio de 2010, e a cidade de Gumercindo Bessa estava num rebuliço só. Pelos quatro cantos se ouvia o fuxico da campanha eleitoral que se aproximava. Os festejos juninos já batiam à porta, e em cada beco, rua e esquina, respirava-se uma mistura de política com aquele gostinho de "Salva Junina", tradição das boas que fecha com chave de ouro o mês de maio. Naquele dia, o telefone tocou. Do outro lado, a voz já conhecida do meu amigo — o sempre atencioso médico e forrozeiro de carteirinha — doutor Gilson Andrade. Perguntou: — E aí, o que tá fazendo? Respondi com sinceridade: — Tô dando bando no cachorro! Riu e, sem pestanejar, me chamou para acompanhá-lo numa visita à casa da amiga Maria do Flau, ali ...

Deu Quiproquó no Forró de Chão Batido

  No ano da graça de 1976, no agreste profundo de um município que só aparece no mapa se a gente der zoom com fé, aconteceu uma das noites mais atrapalhadas já vistas num forrobodó regional. Tudo começou num baile animado por um trio de forró que era uma cópia sem vergonha, mas competente, d’Os 3 do Nordeste. O sanfoneiro era Ganso — um cabra magro feito vara de pescar, mas que tirava som da sanfona como se tivesse pacto com Santo Lua. No zabumba, vinha Mangangão, gordo que só ele, que suava igual tampa de chaleira; e no triângulo, o invocado Saruê, que tocava com tanta empolgação que vez em quando perdia o compasso e seguia mesmo assim, com cara de quem tava certo. A festança se deu numa casa de chão batido, com candeeiro pendurado no meio do salão, balançando como se dançasse também. O dono da casa, Seu Minervino, passava hora em hora com balde d’água pra molhar o chão, senão o chap-chap do chinelo do povo fazia levantar poeira que até gritava por socorro. Nesse tipo de f...